Entrevista César Benjamin no Jornal Brasil de Fato

Entrevista de César Benjamin ao Jornal Brasil de Fato Julho de 2005

Brasil de Fato – Todos os dias aparecem elementos da crise política, como
novos esquemas de corrupção, personagens de quem nunca se havia falado
anteriormente. A política tomou uma velocidade inimaginável. O que
realmente está acontecendo?
César Benjamin – O momento é muito confuso. Um sintoma disso é a
proliferação de análises de conjuntura, ou supostas análises. Isso tem um
lado positivo, pois mostra inquietação e vontade de compreender as coisas,
mas gera uma cacofonia enorme. Precisamos procurar o que é essencial, sem
nos perder em tergiversações ou em aspectos secundários. Por exemplo, é
necessário reconhecer claramente que a esquerda brasileira adotou nos
últimos quinze anos uma prática nova. Refiro-me à introdução, em larga
escala, do que podemos chamar de "o poder dissolvente do dinheiro". A
expressão é de Marx, em outro contexto. A partir de certo momento, que
talvez possa ser fixado no início da década de 1990, o grupo que obteve o
controle do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos
Trabalhadores (CUT) baseou sua ação política em fontes de financiamento
nebulosas, que se multiplicaram, e em uma expansão inédita de relações
mercantis dentro da esquerda. Usou o poder do dinheiro em larguíssima
escala e obteve grande êxito. Isso exige uma reflexão séria, que a esquerda
não parece disposta a fazer.

Entrevista de César Benjamin ao
Jornal Brasil de Fato Julho de 2005

BF – Como era a esquerda antes do domínio do dinheiro?
Benjamin – A esquerda cometeu muitos erros ao longo de sua história, mas
sempre foi uma força de contestação, liderada por grupos e pessoas que
tinham compromissos de longo prazo com a transformação da sociedade.
Podemos fazer muitas críticas às gerações que nos antecederam, mas nenhuma
as atinge do ponto de vista moral. A crise atual é a mais grave da nossa
história. Muito mais grave do que aquela que aconteceu após o golpe militar
de 1964. Pois as crises anteriores eram resultado de enfrentamentos com um
adversário, enquanto a atual é interna. Os fundamentos da esquerda foram
corroídos por dentro. Não podemos tergiversar sobre isso. Os esquemas de
corrupção que estão vindo à luz não são fatos isolados nem começaram
recentemente. São apenas a expansão, para a esfera do governo federal, de
um tipo de prática introduzida na esquerda brasileira há cerca de quinze
anos. O grupo que fez isso construiu uma vastíssima rede de cumplicidade,
com níveis diferentes de envolvimento, ativo ou passivo. É uma rede tão
grande que o limite dessa prática não foi dado, lamentavelmente, pela
própria esquerda. Foi preciso uma desavença com um deputado federal
fisiológico para que o problema viesse a público. O período de liderança de
Luiz Inácio Lula da Silva resultará numa dissolução interna da esquerda.

BF – É uma visão muito negativa da história recente da esquerda.
Benjamin – Temos que buscar uma combinação de firmeza e humildade. Firmeza
para reencontrar princípios que a esquerda perdeu. Humildade para
reconhecer que essa esquerda não se capacitou para ser a depositária da
solução da crise brasileira. Temos de nos abrir para tentar identificar, no
conjunto da sociedade, forças maiores do que a própria esquerda, que podem
ter uma atuação positiva. A crise brasileira é tão grave que é necessário
surgir uma alternativa.

BF – Você não vê nada positivo?
Benjamin – A crise tem dois aspectos positivos. Primeiro, ela coloca um
limite no fisiologismo e na corrupção dentro da esquerda, que será forçada
a refletir sobre isso. Segundo, ela pode vir a abortar a principal operação
política que estava em curso, que era produzir uma falsa polarização
eleitoral entre o PT e o PSDB. Se essa operação desse certo – ou se ela
vier a dar certo – a hegemonia burguesa estaria bastante consolidada. Quem
controla só a situação está sob permanente risco. Hegemonia pede controle
da situação e da oposição. Estávamos marchando para o paradigma dos Estados
Unidos: o Partido Republicano e o Partido Democrata se alternam no poder,
sem colocar em risco a hegemonia da grande burguesia. A meu ver, Lula não
tem como ser candidato nas eleições de 2006. Se for, terá de ser combatido
duramente.

BF – Mas é a direita que se fortalece…
Benjamin – É claro que o PSDB e o PFL se fortalecem no curto prazo. Mas não
acredito que a sociedade aceite uma hegemonia unipolar da direita. A
sociedade vai pedir a formação de um campo não neoliberal. Nosso maior
problema político, nessa conjuntura, é identificar o contorno desse novo
campo, suas forças sociais, seu programa mínimo, para sairmos de uma
posição passiva e reativa e adotarmos uma posição propositiva. Precisamos
pensar nossa ação em um contexto de alternativa ao neoliberalismo, se
possível, já em 2006. Não sei se estaremos à altura desse desafio. Se
ficarmos presos ao universo do governo e à luta interna do PT não
conseguiremos enfrentá-lo. A crise do governo Lula, paradoxalmente, pode
ser a crise do modelo neoliberal.

BF – Você defende um afastamento em relação ao PT. O partido, entretanto,
não é só corrupção. Tem experiências organizativas e políticas
fundamentais, que mudaram o cenário político brasileiro. Por exemplo, o
orçamento participativo e as relações com movimentos sociais.
Benjamin – Um ciclo da esquerda brasileira se encerra. O que não quer dizer
que tudo que tenha sido feito nesse ciclo tenha sido negativo. Não se pode
imaginar que vamos criar um novo absoluto. Esse, aliás, foi um problema
presente na criação do PT, pois ele não reivindicou herança alguma. Jogou
tudo o que havia existido antes na vala comum do erro. O fim de um ciclo
não quer dizer que o conjunto de experiências tenha sido negativo ou que
não haja herança a ser recuperada. O que caracteriza um ciclo é uma dada
interpretação sobre a sociedade, uma forma de luta estratégica e uma
organização política consolidada, que seja portadora daquela interpretação
e condutora da luta estratégica. Tivemos um ciclo longo do Partido
Comunista Brasileiro (PCB), que entrou em crise após 1964. A partir daí,
até mesmo por causa da repressão, houve um período de diáspora. Nenhum
centro hegemônico se consolidou até o surgimento do PT no início dos anos
80. Houve quinze anos de intervalo. O fim do ciclo PT nos coloca o desafio
de construir uma nova interpretação, uma nova organização política e uma
nova visão estratégica. Não é tarefa simples, que uma pessoa ou um grupo
possam fazer. Depende de um processo, que envolve a dinâmica da esquerda e
da sociedade. O PT, por exemplo, não surgiu de um ato de vontade. Foi fruto
de um momento histórico preciso.

BF – Temos que esperar, sentados, o novo ciclo?
Benjamin – Não controlamos o surgimento de um novo ciclo. O que podemos
fazer hoje é mudar nossa postura, pois a esquerda tem sido frouxa nos
princípios e arrogante em sua auto-avaliação. Precisamos ser o contrário
disso: firmes e humildes. Assumir claramente que temos de reaprender. Temos
que lutar muito para conquistar a confiança do povo brasileiro. É um
processo dolorido, que envolve prática, cultura política, valores.

BF – Que condições temos de fazer isso?
Benjamin – Toda a minha militância, desde que saí do PT em 1995, foi para
tentar advertir que a trajetória do partido conduziria a esquerda
brasileira à maior crise de sua história. Disse isso várias vezes – a
primeira delas no próprio encontro nacional do PT no Espírito Santo, diante
de 800 delegados – e paguei muito caro: calúnia, censura, isolamento. Nesse
encontro, usei a expressão "ovo da serpente" para me referir ao caixa dois
feita na campanha de 1994, à revelia da direção. Uma direção partidária que
aceita passivamente que uma parte sua monte mecanismos paralelos de
financiamento, aliando-se a bancos e empreiteiras, não pode ser chamada
direção. É uma farsa.
Saí do PT quando percebi que não havia mais espaço para a batalha de
idéias. A atividade partidária se transformara em mera composição de
interesses, que passava pelo controle dos inúmeros caixas-dois que se
multiplicavam. Nesses anos todos, vi a rede de cumplicidades. A esquerda
não reagiu. Parte dela foi comprada e aderiu a essa prática. Gostou de
fazer campanhas eleitorais milionárias. Enriqueceu. Os companheiros que não
se corromperam, que felizmente são muitos, fizeram uma crítica leve, pois
havia carreiras em jogo, expectativas de poder, compromissos. O descalabro
é enorme. Todos os dias aparecem 200 mil dólares para lá, 500 mil para cá,
5 milhões para lá. É uma quantidade de dinheiro extraordinária, levantada
por uma máquina sistêmica, planejada, coletivamente organizada. Tenho a
impressão que o governo Lula estava montando um esquema de corrupção poucas
vezes igualado na história brasileira.

BF – O Lula não pode reanimar essa esquerda em diáspora?
Benjamin – O PT aderiu à ordem da pior forma possível, diferente da
socialdemocracia européia, que aderiu com uma doutrina e com ganhos para
sua base social. O PT se associou à ordem capitalista brasileira, nos anos
90, em um período em que não houve ganhos para a base social que deveria
representar. Aderiu sem doutrina, e, uma vez no poder, tornou-se algoz de
sua base social. Os líderes do PT, individualmente, mudaram de classe
social. O dinheiro comandou o processo. Isso é muito grave.

BF – No momento atual, o que é uma frente antineoliberal? Para que serve?
Benjamin – Com o governo Lula, a crise brasileira chegou a um patamar novo.
Não dá mais. Pegue o atual Orçamento da União. Em dez dias, o Brasil gasta
em juros tudo o que investe em educação no ano. Em um dia de pagamento de
juros, o Brasil gasta mais do que em habitação popular no ano. Em um minuto
de pagamento de juros, gasta mais do que em política de direitos humanos no
ano. Quando o país chega nesse ponto, não tem mais discussão técnica.
Qualquer discurso que justifique isso é criminoso. O País está doente. O
agravamento da crise brasileira é muito rápido. Isso pode facilitar uma
política firme, ao mesmo tempo radical e generosa. Muitos setores honestos
da sociedade estão percebendo isso. Acho que deveríamos elaborar um
programa mínimo, antineoliberal, e definir claramente uma ruptura com o
sistema que mantém o Brasil em estado de doença crônica.

A crise atual da esquerda brasileira é a mais grave de sua história
A esquerda tem sido frouxa nos princípios e arrogante em sua auto-avaliação
A figura do Lula ficará associada a essa destruição interna da esquerda