Sobre a “Carta ao Povo Brasileiro”

Fábio Luís, Correio da Cidadania, 455, 2 a 9 de julho de 2005

Os acontecimentos do Planalto que levaram à demissão de José Dirceu
motivaram a circulação de uma "Carta ao Povo Brasileiro" assinada por 42
organizações sociais de peso, como a CUT, a UNE, a CNBB e o MST.

O que poderia ser um saudável esforço de aglutinação do movimento social é
severamente comprometido pelo diagnóstico duvidoso de que parte o
documento. Ao contrário de esclarecer o povo sobre a situação política, seu
resultado pode ser mistificar desnecessariamente o momento vivido.

A carta parte de duas premissas questionáveis.
Primeiro, afirma que as denúncias de corrupção constituem uma manobra de
sentido golpista. Como se sabe, esta é a alegação oficial do Partido e, no
entanto, não há indícios concretos disso. Pelo contrário, observa-se um
esforço da imprensa em preservar Lula e Palocci das denúncias, sintoma
claro de que existe concordância geral com o governo. O alvo atingido é o
Partido dos Trabalhadores, ainda portador de um potencial subversivo no
seio de suas contradições. Distante de um golpismo, observa-se um movimento
de disputa política, objetivando, por um lado, atingir o carisma eleitoral
do PT e, por outro, aguçar o conservadorismo do seu governo.

Em segundo lugar, o documento retoma uma visão já superada, de que o
governo Lula está "em disputa".  Haveria dois projetos no interior do
governo, um continuísta e outro popular, e o papel do movimento social
seria pressionar no sentido de fortalecer os defensores da segunda
alternativa.  Os fatos não revelam, porém, uma disputa real, já que não
houve um único campo de substantivo avanço social. O governo mostra-se no
seu conjunto conservador e anti-popular, e sua resposta à presente crise
política é orientada a reforçar esta posição. Ao rever a partilha de
ministérios com o PMDB, por exemplo, revêem-se os aliados, mas não a
prática nem os objetivos da política, em nenhum momento postos em questão.

A "Carta ao povo brasileiro" assume o diagnóstico de golpismo e afirma o
apoio dos movimentos sociais ao governo condicionado a um elenco de
fórmulas genéricas, que poderiam ser o programa de qualquer partido:
apuração das denúncias, juros menores, reforma política, democratização da
mídia etc.

Em um momento onde os movimentos sociais são chamados pelos fatos a
reafirmar sua independência em relação ao governo e ao partido, lançam um
documento que aponta no sentido oposto. Constatado o caráter anti-popular
do governo e a hegemonia inquebrantável de um projeto de poder conservador
no interior do partido, o movimento da esquerda deve ter o sentido de
diferenciar-se do governo e do partido, e não reforçar uma identificação,
sem a sólida base de um programa comum.

Uma unidade dos movimentos em termos tão genéricos é gratuita. Apoio
incondicional poderia ser motivado por uma ameaça real de golpe, "em nome
da democracia" – que curiosamente, neste mesmo ano, foi reivindicado por
governos de direita contra a ação popular que os derrubou em mais de um
lugar na América Latina.

Cabe perguntar o que os movimentos brasileiros ganham com a adesão a um
documento que só interessa ao próprio governo e aos que estão ganhando com
ele. A "carta", aparentemente, foi produzida pelo MST, diz-se em resposta à
solicitação de setores do próprio Partido dos Trabalhadores, interessados
em fortalecer sua "disputa" pela esquerda. Se for este o caso, os
movimentos foram ou manipulados ou coniventes com uma análise e um gesto
que apenas entorpece a compreensão dos fatos pelo povo brasileiro.

Ao invés de escaparem em botes salva-vidas de um governo que está
afundando, rodeiam o barco para sustentar com os braços da organização
popular o rumo de uma embarcação que leva o país ao alto-mar da barbárie.

Fábio Luís é jornalista.