Há um golpe em marcha no país

O golpe em marcha não é contra o governo Lula:
É apoiado por ele e quer perpetuar sua política econômica
Carlos Eduardo Carvalho*, 22.07.05

Há um golpe em marcha no país, sem dúvida, mas não é contra Lula e seu
governo, como alardeiam seus defensores. O golpe tem o singelo nome de
déficit nominal zero. Esta é a única proposta no cenário político atual que
implica mudanças nas instituições: quer alterar a norma constitucional que
destina parcelas específicas do gasto público para educação e saúde e quer
introduzir na Constituição a obrigatoriedade do déficit nominal zero.

Este é o golpe a enfrentar. A Carta Magna é uma das instituições
fundamentais da República. Alterar a Constituição por um casuísmo é um
golpe. Alterar a Constituição para defender uma opção de política econômica
é um golpe. O golpe tem autor conhecido, o velho golpista Delfim Netto,
ministro da ditadura e notório defensor dos métodos antidemocráticos e dos
interesses antipopulares.

O objetivo do golpe é perpetuar a política econômica do governo Lula,
garantindo a ela uma "blindagem constitucional". O objetivo é mexer nas
instituições para penalizar a maioria dos brasileiros, em proveito de uma
reduzida minoria. Os perdedores serão os trabalhadores, os pobres em geral.
Os ganhadores serão os rentistas, os credores do estado e os banqueiros.
Trata-se de um golpe, sem dúvida, um golpe contra o povo brasileiro. Tem o
apoio do governo Lula.

Os reais objetivos da proposta estão dissimulados sob uma apresentação
"técnica", como é hábito de seu melífluo autor. Na base está o
reconhecimento de que a atual política econômica é perigosa. Os juros altos
impedem o crescimento sustentado, pressionam a dívida pública, o
endividamento público não se reduz, o que é o argumento para mais juros
altos, um círculo vicioso que preocupa até os seus beneficiários. Trata-se
então de criar condições para reduzir os juros. Esta declaração de bons
propósitos alivia as dores de consciência de muitos petistas "mais à
esquerda" e atende aos reclamos de parte da sociedade.

Delfim e outros representantes do grande capital têm medo de que haja
descontrole na economia, no caso de uma crise externa, e a dívida pública
se torne inadministrável. Têm medo também de que o desgaste do governo Lula
dê lugar a outro governo, o qual seria imprevisível, e poderia até mesmo
tentar romper a ditadura dos credores e dos rentistas sobre o estado
brasileiro. A questão crucial é garantir que os juros da dívida pública
serão pagos com a pontualidade e a generosidade de hoje, por muitos anos à
frente. Trata-se de estabelecer uma camisa-de-força: garantir, em preceito
de natureza constitucional, que o pagamento dos juros da dúvida pública
terá precedência absoluta sobre todos os demais compromissos do estado
brasileiro.

Nada disso pode ser dito às claras, é óbvio. A proposta é justificada com a
necessidade de baixar os juros. Entra aqui a pitada de lugar-comum, de bom
senso de almanaque: o país precisa de "contas em ordem", de "equilíbrio
fiscal". É o truque de sempre: fica implícito que os juros são altos por
conta do déficit fiscal. Esta tese nunca foi demonstrada. Sustentamos
durante anos que o déficit cresceu nos governos tucanos por conta da
política cambial e da estratégia de estabilização do Plano Real. Os juros
são altos porque a dívida cresceu, porque a posição cambial do país é
vulnerável e porque a política de Malan e Palocci é "comprar" o apoio dos
mercados "pagando" com juros imorais. Para não reabrir esta polêmica, vamos
analisar a proposta dentro do pressuposto implícito dos seus autores, de
que o problema é de natureza fiscal.

Em 2004, ano de grande crescimento econômico, o setor público gerou
superávit primário de R$ 80 bilhões. Este é o resultado corrente de todos
os níveis de governo: receitas tributária menos despesas de custeio,
políticas públicas, investimentos, previdência. O gasto com juros ficou
pouco acima de R$ 128 bilhões, 7,3% do PIB brasileiro. Daí resultou R$ 47
bilhões (2,7% do PIB) de déficit nominal, o resultado final de todo o setor
público, inclusive gasto com juros.

A proposta de Delfim é eliminar este déficit nominal, por meio de corte de
despesas corrente do governo. Propõe para isso que seja reduzida em 20% a
destinação obrigatória de recursos para Educação e Saúde, prevista na
Constituição, e que a exigência de equilíbrio no resultado nominal se torne
uma regra constitucional. Feito isso, nenhum governo poderá repor a
obrigatoriedade das verbas sociais sem nova emenda constitucional.

Em troca, oferecem o quê? A promessa de que os juros cairão "naturalmente"
É isso mesmo: uma promessa, uma simples promessa! Nenhuma exigência de que
os juros caiam, nenhum compromisso prévio, nenhum prazo. E se o BC não
baixar os juros, porque o petróleo subiu ou caiu, porque houve seca ou
inundações, por causa do efeito estufa ou da guerra no Iraque? Bem, neste
caso, o povão terá que esperar um pouco até que haja condições favoráveis
para que os juros caiam enfim, como todos querem. Enquanto isso os
rentistas e os banqueiros continuarão recebendo pontualmente suas rendas
usurárias, a remuneração de que precisam para manter a credibilidade do
governo.
Vamos supor que os movimentos sociais e os remanescentes da esquerda
organizada decidissem recuperar sua independência política e decidissem
tomar iniciativas próprias para buscar uma saída pela esquerda da crise
atual. Poderiam discutir a proposta de Delfim com algumas exigências mínimas:
a) limitação imediata do gasto do setor público com juros; se o objetivo é
"economizar" R$ 47 bilhões, propor que 75% deste corte de gastos seja feito
na conta de juros; assim, o gasto anual com juros deveria encolher em R$
35,3 bilhões até o final de 2006 e não poderia superar 5,28% do PIB, ou R$
92,7 bilhões a preços de 2004;
b) corte de despesas correntes, no montante necessário para cobrir os 25%
do déficit nominal, ocorreria apenas em 2006, com reversão automática em 2007;
c) aprovação imediata do princípio do orçamento obrigatório, ou seja, o
Executivo fica obrigado a executar o orçamento anual, sem a prerrogativa de
retardar despesas ou de não realizá-las.
O sentido da proposta é simples: tratar da mesma forma as despesas
correntes e as despesas com juros. Se os gastos com educação e saúde podem
ser contingenciados, que o sejam também os gastos com juros. Se o BC quiser
praticar juros muito altos, os encargos não serão pagos e o BC que se
entenda com os mercados. Na prática, isto obrigaria o BC a cortar os juros
de imediato, aquilo que o autor da proposta "promete".

Em troca do sacrifício adicional dos gastos sociais até o final de 2006, a
sociedade receberia a garantia de que o orçamento será cumprido de fato e
de que os cidadãos terão os mesmos direitos aos recursos públicos hoje
atribuído apenas a banqueiros e a rentistas.

Uma proposta assim exigiria um posicionamento diferente dos movimentos
sociais e dos remanescentes da esquerda. Ao invés de denunciar "o
golpismo", sem explicar do que se trata, deveriam lançar um movimento em
defesa da legalidade e da Constituição. Este movimento teria como alvo a
proposta de Delfim e quaisquer tentativas semelhantes, além de barrar o
suposto golpe contra Lula que muitos petistas acreditam existir.

Uma proposta assim ajudaria a exigir do governo Lula a mudança da política
econômica como condição para apoiá-lo. Se Lula não quer mudar a política
econômica, que governe então com Palocci, Meirelles, os tucanos, a Febraban
e o FMI, como tem feito. Dar apoio a Lula sem exigir a mudança da política
econômica é dar solidariedade a esta gente.

*Carlos Eduardo Carvalho – Economista, professor da PUCSP
Artigo publicado na Revista Espaço Acadêmico, www.espaçoacademico.com.br