O MST é um movimento autônomo?

Folha de S. Paulo, 23.5.2005, Opinião

O MST é um movimento autônomo?

SIM

Um movimento contra a escravidão

JOSÉ ARBEX JR.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, MST, comemora a sua
maioridade (21 anos) com honra, pompa e circunstância. A marcha sobre
Brasília demonstra, "urbi et orbi", a sua independência frente ao governo
federal, a sua vitalidade como movimento social e o seu compromisso
inarredável de lutar pela reforma agrária.

Não é pouco, especialmente quando políticos e intelectuais até ontem
comprometidos com a luta pela transformação social, hoje, acometidos por
providencial amnésia, negociam sem pudor os próprios princípios no bazar de
cargos e "oportunidades de mercado".
Não pertenço ao MST, não o represento nem tenho procuração para falar pelo
movimento. Mas, como cidadão a ele vinculado por laços de solidariedade,
sinto-me orgulhoso de sua luta, que é histórica em pelo menos dois sentidos.
Primeiro, por ter como objetivo completar a tarefa de abolir a escravidão:
a dos pobres ao capital e a da terra ao latifúndio. Se há um denominador
comum a cinco séculos de Brasil, é o fato de que a maioria pobre nunca teve
acesso à terra. A infâmia do latifúndio marca a história com o látego do
senhor de escravos: até 1850 a terra era monopólio da Coroa; depois, foi
dividida entre a nobreza, os capitalistas brancos europeus e quem mais
pudesse pagar; no século 20, foi invadida e grilada por coronéis e empresas
internacionais; e agora é entregue à sanha do "moderno" agronegócio,
aliança entre fazendeiros e meia dúzia de transnacionais que dominam a
agricultura brasileira.
Nunca a terra pertenceu ao negro alforriado, ao mestiço miserável, ao
branco marginalizado. O latifúndio, produtivo ou não, é sinônimo de atraso,
por criar desigualdade, concentração de renda, fome -ou "subnutrição", como
preferem alguns de nossos doutores-, êxodo rural e tudo o que ele implica
de nefasto. Pois bem, o MST quer abolir o latifúndio, como condição
indispensável para resolver o problema da pobreza e da desigualdade, e
impulsionar uma transformação social de grandes proporções.
Não, caro leitor, não é o comunismo. As grandes potências capitalistas do
planeta -a começar dos Estados Unidos e França- promoveram a distribuição
de terra e investiram no trabalho livre. Aliás, por isso se transformaram
em potências.
Segundo, a luta do MST é histórica por estar fazendo história. Nunca um
movimento de camponeses organizado em escala nacional durou tanto nem criou
tantos vínculos capilares com a sociedade civil. A elite sempre foi
eficiente quando se tratou de isolar e dizimar os movimentos populares
(basta lembrar Palmares, Canudos, as ligas camponesas, a Ultab, o Master e
tantos outros).
O MST sobrevive com a teimosia e o atrevimento de quem sabe que a sua luta
tem dimensão épica, faz parte da batalha mais geral pela emancipação
nacional. Por isso, mantém alianças com o conjunto de movimentos sociais,
organizações de trabalhadores, sindicais, populares e intelectuais que não
abandonaram a perspectiva de fazer do Brasil um país soberano.
Graças ao serviço de permanente desinformação praticado pela mídia, poucos
sabem que o MST mantém 1.300 escolas de ensino fundamental e emprega 3.000
educadores que cuidam de 160 mil crianças e adolescentes. Por meio do
convênio Brasil Alfabetizado, acertado com o MEC, cerca de 30 mil adultos
foram alfabetizados, com o auxílio de 2.000 educadores populares
voluntários. Outros 300 educadores trabalham com crianças de até seis anos
nas "cirandas infantis", que funcionam nos assentamentos e acampamentos.
Esse trabalho mereceu o Prêmio Unesco de Excelência Pedagógica.
Em janeiro passado, o MST inaugurou a primeira universidade popular do
Brasil, em Guararema, a 60 km de São Paulo -para horror de certos doutores
preconceituosos, incapazes de aceitar a idéia de que o "populacho" possa
organizar um centro produtor de conhecimento de alto nível e rigor
científico. A sua sede foi construída com trabalho voluntário e com
dinheiro oriundo de contribuições de organizações, artistas e intelectuais
brasileiros e estrangeiros (incluindo Sebastião Salgado, Chico Buarque e
José Saramago). Não por acaso, a universidade foi batizada com o nome de
Florestan Fernandes e saudada, no dia de sua inauguração, por Antonio Candido.
O MST, mundialmente reconhecido, respeitado e admirado, só conseguiu
realizar tanto por ser autônomo em relação aos partidos políticos e a
quaisquer outras instituições estranhas aos assentamentos e acampamentos
que constituem a sua base e a sua vida. Não se submete, portanto, ao jogo
de alianças, acordos espúrios, conveniências eleitorais, cálculos e táticas
arquitetado nos gabinetes obscuros dos palácios. O MST só não é autônomo em
relação ao conjunto da nação oprimida. Ao contrário: a ela, somente,
subordina-se e atrela o seu destino.
Senhores da terra, é muito fácil acabar com o MST. Basta realizar a reforma
agrária.

———-
José Arbex Jr., 47, jornalista, doutor em história pela USP, é editor
especial da revista "Caros Amigos" e autor de "Showrnalismo – a Notícia
como Espetáculo" (editora Casa Amarela).
@ – arbex@uol.com.br

 
Nao – A dependência oculta
JOSÉ DE SOUZA MARTINS

O MST não é uma organização política autônoma nem é um movimento social que
disponha, por isso, da independência própria dessa forma de manifestação
das demandas sociais. Mas é uma importante expressão do que vem se tornando
a política na modernidade anômala dos países de grandes desencontros entre
o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social, como o Brasil.
Países em que populações retardatárias da história emergem nas brechas do
sistema político e apresentam, de forma ritualmente tradicionalista, suas
demandas sociais aparentemente extemporâneas. Estamos em face da realidade
política de populações que tentam fazer um acerto de contas com a história.
Justamente porque sua data histórica sugere que suas demandas são demandas
atrasadas e fora de época é que a organização assume a aparência de uma
autonomia que não é real. De modo que, mesmo com seus aliados mais
importantes, de cujas organizações são, hoje, suportes fundamentais, como o
PT e a igreja, pode manter uma relação de estranhamento crítico que se
manifesta em cobranças, como essas da marcha do MST sobre Brasília. Mas,
chegam lá, o presidente veste o boné mais uma vez e os ministros dizem que
já está tudo certo e arranjado. A reivindicação oculta da marcha atendeu a
uma necessidade do governo: dar visibilidade para os seus êxitos, ainda que
limitados, na questão agrária, muito aquém do anunciado. Sobretudo mostrar
um governo aberto às reivindicações camponesas.
O MST é certamente uma organização constitutiva do Partido dos
Trabalhadores, uma base do partido. Sem a Pastoral da Terra -da qual o MST
se origina- e sem o MST, dificilmente o PT teria se expandido tão
extensamente no interior e dificilmente se tornaria o único partido
brasileiro com uma ampla base rural e popular. Em termos da extensão
territorial de sua presença, o PT é muito mais um partido rural do que um
partido operário.
Quando, na campanha eleitoral de Lula à Presidência, essa organização
decidiu refrear suas manifestações e as ocupações de terra, fê-lo
exatamente para não prejudicar a candidatura petista, para não a carimbar
com nenhum timbre de radicalismo. O calendário das agitações no campo
regulado pelo calendário eleitoral, não só nesse caso, tem sido uma boa
indicação do vínculo partidário da organização.
O MST é também uma das principais e mais interessantes expressões políticas
do catolicismo pós-conciliar na América Latina. Ele se constituiu a partir
de quadros das pastorais sociais. Foi quando começou a ficar evidente que
mesmo os bispos chamados progressistas tinham limites claros para se
envolverem na pastoral de suplência que resultou do profundo compromisso da
Igreja Católica com os trabalhadores rurais. Era o cenário histórico da
ditadura militar, da violência genocida e da violação radical da própria
condição humana, sobretudo na chamada Amazônia Legal, mais da metade do
território brasileiro.
A busca de alternativas e o posicionamento político dos agentes de pastoral
envolvidos na arregimentação e no protesto das vítimas pediu também uma
opção política radical. Esse era o limite dos bispos com o fim da ditadura.
O canal de expressão dessa mobilização camponesa teria que ser outro. O
nascimento do MST foi o meio de fazer fluir para o âmbito próprio da
política o que já não tinha condições de se organizar e expressar
plenamente no âmbito da igreja.
O MST se tornou de vários modos expressão do catolicismo militante, pelo
apoio moral, logístico e material. Importou da igreja formas litúrgicas de
manifestações de massa, expressões ampliadas das romarias da terra,
variantes políticas das procissões religiosas. O MST não se move apenas com
base em ideologia política, mas sobretudo com base na mística milenarista
de um tempo de redenção dos pobres e oprimidos.
Porém a principal herança que o MST recebeu da igreja, e seguramente a mais
interessante, é a da grande tradição do pensamento conservador, aquele modo
de pensar o mundo que, no século 19, opôs-se ao liberalismo da revolução do
século 18, como mostrou Robert Nisbet. No lugar do indivíduo fragmentário,
a concepção de pessoa; no lugar da sociedade da sociabilidade abstrata e
interesseira, a comunidade da sociabilidade solidária e afetiva. Os valores
que norteiam o MST vêm desse estoque de idéias conservadoras: a propriedade
da terra, o trabalho comunitário, a religião, a família, a comunidade. De
fato, ele está muito longe do marxismo. E muito longe da independência: o
MST até hoje não tem uma compreensão objetiva de seu lugar na história,
justamente porque não tem autonomia.