Correio Braziliense, 23.5.2005, Brasil
O líder do MST diz que a marcha deu resultados e critica o governo por não
dar prioridade ao social
André Carravilla
Da equipe do Correio
João Pedro Stedile marchou em silêncio. Mochila nas costas, chinelo de
dedos e boné na cabeça, o economista pós-graduado no México misturou-se aos
12 mil sem-terra na caminhada até Brasília, que terminou na quarta-feira da
semana passada. Alegando que cada um tinha sua função _ e a dele não era
falar _ recusou-se a dar entrevistas à imprensa. Quando quebrou o silêncio,
o gaúcho de Lagoa Vermelha foi polêmico: _Vamos dar um pau no Palocci_,
disse, sobre a atuação dos economistas do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) em um possível encontro com o ministro da Fazenda.
Dois dias depois do fim da marcha, Stedile concedeu, por e-mail, esta
entrevista ao Correio. Aqui, ele diz que as ocupações a propriedades são a
forma mais eficaz de acelerar a reforma agrária e cobra mais investimentos
do governo. _O Ministério da Fazenda corta apenas os gastos sociais, mas
não corta os juros_, reclama. Também afirma que a imprensa brasileira é
preconceituosa com os sem-terra e critica o ministro da Agricultura,
Roberto Rodrigues: _Ele se comporta muito mais como presidente do sindicato
do agronegócio do que como um ministro de Estado_. A seguir, os principais
trechos da entrevista.
CORREIO BRAZILIENSE _ A marcha mostrou resultados?
JOÃO PEDRO STEDILE _ A marcha tinha como objetivos fazer com que a reforma
agrária voltasse a ser debatida pela opinião pública, debater com a
sociedade a natureza dos problemas brasileiros e a necessidade de se mudar
a política econômica. Também buscávamos resolver os problemas imediatos do
atraso da reforma agrária nos estados e levar o governo federal a
implementar medidas estruturantes. Na nossa avaliação, todos esses
objetivos foram alcançados. Portanto, apesar do sacrifício das pessoas que
participaram, foi um sucesso absoluto. Demonstrou que existem energias na
sociedade brasileira que podem ser usadas para construirmos um projeto de
desenvolvimento para o país.
CORREIO _ Qual a sua avaliação sobre a violência registrada no último dia
da marcha?
STEDILE _ O MST sempre teve um bom relacionamento com a Polícia Militar do
Distrito Federal. Já disputamos com eles até partidas de futebol. Mas temos
consciência que há setores dentro da polícia do GDF que são manipulados
pela direita e pelos conservadores. Esses setores, que envergonham a
polícia, ficaram todo tempo provocando um clima de tensão, para gerar algum
conflito que pudesse tirar o sucesso da chegada da marcha, pelo menos na
imprensa. E, infelizmente, conseguiram. Nós nos iludimos com as boas
relações que fizemos com o comando e subestimamos a capacidade desses
setores nos aprontarem alguma. E aprontaram. O episódio foi claramente
provocado. No ato, viu-se que um carro da polícia civil tentou passar pelo
meio da multidão, embora não tivesse nada que fazer lá. Dai, alguns punks e
sectários agrediram o carro. Imediatamente, a polícia reagiu contra toda
multidão. Impressionante a rapidez com que a cavalaria estava a postos. Deu
a impressão de que estavam esperando para agredir a todos. Em seguida, o
helicóptero fez vôos rasantes e aumentou o clima de tensão.
CORREIO _ O caminhão de som não estimulou os manifestantes a vaiar a
polícia montada?
STEDILE _ Não somos idiotas. Nunca pregamos o confronto com a polícia como
forma de resolver problemas. O objetivo das manifestações do MST é
pressionar para resolver os problemas do país. Os jornalistas são
testemunhas que os carros de som orientaram para evitar as provocações dos
policiais e dos punks. O episódio revela que setores da polícia deveriam
voltar à escola e terem um pouco mais de dignidade com o tratamento do povo.
CORREIO _ O acordo com o governo não falha ao apresentar uma lista de
promessas sem indicar a fonte de recursos?
STEDILE _ Dinheiro não falta, o que falta é dar prioridade à área social.
De onde virão os recursos, isso é uma questão técnica, menor. Isso é com os
burocratas do governo. Mas posso garantir que o governo recolhe muitos
recursos públicos de impostos. No entanto, infelizmente, a prioridade é
apenas pagar juros e atender os compromissos com as elites. Esperamos que o
governo honre com os compromissos assumidos e assinados publicamente. Nós
fizemos um acordo político com o governo, que reconheceu estar em dívida
com os sem-terra e com o povo brasileiro. O governo não vinha cumprindo a
meta de assentamento. Também não cumpria suas obrigações nos acampamentos e
assentamentos.
CORREIO _ O governo não deveria ter dito qual será o valor do projeto de
suplementação orçamentária que enviará ao Congresso até o dia 31 de maio ?
STEDILE _ Não. O que queremos é que o governo recomponha o Orçamento da
União já aprovado pelo Congresso, que previa os R$ 3,7 bilhões para reforma
agrária. O que precisa apenas é descontigenciar todos os recursos que são
para área social.
CORREIO _ Qual sua avaliação da cobertura da imprensa sobre o acordo?
STEDILE _ O Ministério da Fazenda corta apenas os gastos sociais, mas não
corta os juros. No mesmo dia do final da marcha, o Banco Central aumentou
os juros de 19,5% para 19,75%. Isso vai aumentar os custos do governo ate o
final do ano em R$ 900 milhões só em juros. Mas nenhum jornal perguntou se
o governo iria enviar medida para suplementação orçamentária para os
bancos. Os jornais e seus proprietários sempre são críticos ao governo
quando quer fazer gastos sociais, mas ficam calados quando aumentam os
gastos com bancos e a transferência de lucros.
CORREIO _ E a posição do ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, em
relação aos critérios de produtividade?
STEDILE _ Temos ouvido dentro do governo de que o ministro da Agricultura
se comporta muito mais como presidente do sindicato do agronegócio do que
como um ministro de Estado. Sua prioridade deveria ser o desenvolvimento de
todo país e de todo povo. Ele precisa de umas aulinhas sobre o que diz a
Constituição a respeito do papel de um ministro. Estão fazendo um cavalo de
batalha com os índices de produtividade como se fosse uma agressão ao
latifúndio. Ora, convenhamos, não é o agronegócio que se orgulha de ter
mudado a agricultura brasileira. Dizem ter modernizado e sustentado o país.
Pois bem, os índices utilizados pelo Incra são de 1975. A intenção é
atualizar os indicadores. Usar os dados levantados pelo IBGE em 1995. Isso
representa dez anos de atraso. Mesmo assim, reclamam. Reclamam, porque
querem manter o latifúndio intocável. Mas a Constituição é clara: toda a
grande propriedade, acima de 1.500 hectares, que não produzir e não cumprir
sua função social, deve ser desapropriada pelo Estado, em nome da
sociedade. O que está faltando é um pouco mais de coragem ao governo para
fazer as mudanças necessárias. Na teoria, todo o governo é a favor de
combater a pobreza e a desigualdade, mas cada vez que alguém apresenta
propostas concretas que afetam a concentração de terra e riqueza, não deixam.
CORREIO _ O senhor afirmou aos militantes que _aumentem a consciência e
intensifiquem as invasões_. Isso não gera mais violência?
STEDILE _ Ao contrário. Quis dizer no discurso justamente que nossa
militância precisa estudar mais, compreender a conjuntura política, a luta
de classes. Isso significa conhecimento, consciência da realidade, para não
cair nas provocações baratas de policiais ou de setores conservadores. E,
portanto, evitar a violência, evitar confrontos. Em geral, as pessoas de
menor consciência é que caem mais fácil nas provocações. Nosso remédio
contra a violência é o estudo, o conhecimento.
CORREIO _ As invasões são mesmo necessárias ?
STEDILE _ Veja como vocês são preconceituosos. Sempre falamos ocupações,
porque é bem diferente de invasão. Invasão é um ato de apropriação indébita
de um bem para aproveitamento privado, particular. É o que fazem os
fazendeiros quando invadem terra pública e terra de índios, para seu uso e
enriquecimento pessoal. Ocupação é uma mobilização de massa, que entra numa
área, para pressionar o governo a aplicar a lei, a desapropriá-la. Esses
conceitos estão na sociologia política e estão num acordo do próprio STJ
(Superior Tribunal de Justiça). Mas vocês, jornalistas, insistem em usar
mal as palavras, o que leva a preconceitos. Sempre defendemos, desde o
inicio, há 21 anos, as ocupações massivas realizadas pelos pobres do campo.
Infelizmente é a única forma eficaz de pressionar o governo para aplicar a
lei. Foi a forma usada por todas as famílias que hoje estão assentadas.
Nenhuma recebeu por benesse de algum político ou iniciativa do governo.
Todas elas tiveram que se organizar, lutar e ocupar a terra para então o
Estado agir.
CORREIO _ O senhor tinha a expectativa de que, no governo Lula, as invasões
diminuíssem?
STEDILE _ Claro. Nós organizamos ocupações, não porque gostamos, porque
seja um passeio, um piquenique, nós só organizamos ocupações porque o
Estado não funciona. O Estado brasileiro está organizado apenas para manter
os privilégios dos ricos. Sempre chega tarde para atender os pobres. Nenhum
pobre gosta de ficar na fila do INSS de madrugada. Lula tinha como
prioridade a reforma agrária, nós acreditávamos que as ocupações
diminuiriam. Certa ocasião, em reunião com os ministros, o presidente Lula
disse que suas duas prioridades máximas eram o combate à fome e a reforma
agrária. Se ele de fato conseguisse que o Ministério da Fazenda pensasse
assim também, certamente as ocupações, os conflitos sociais no campo
diminuíriam.
