Octubre de 2008
Resumo
O trabalho estuda a evolução do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) e da reforma agrária no Brasil. Argumenta também que o governo
não quer uma reforma agrária que limite o agronegócio e por isso
privilegia a legalização da colonização de terras na Amazónia. Expõe finalmente
que o agronegócio e as ocupações camponesas avançam simultâneamente
nessa região o que isso deixa prever uma dura disputa territorial
no momento em que a fronteira agricola chegue ao seu limite.
Introdução
Nosso objetivo neste artigo é uma breve reflexão a respeito do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e das mudanças recentes que
ocorreram nas políticas da reforma agrária brasileira. A reforma agrária é uma
política territorial que serve para minimizar a questão agrária. Para este estudo,
tomamos como referência a definição de questão agrária compreendida
como um problema estrutural do capitalismo (Fernandes, 2001), sendo parte
de sua própria lógica de desenvolvimento, gerando processos de diferenciações
e desigualdades, expulsões e expropriações, excluindo ou subalternizando,
destruindo e recriando o campesinato. Por essa razão, as relações entre
campesinato e capital são de conflitualidades permanentes e explicitadas, de
um lado, pela subalternidade do campesinato ao capital e pelo poder que o
capital tem, de acordo com os seus interesses, de destruir e recriar o campesinato
e, de outro lado, pela resistência do campesinato em determinar sua
própria recriação por meio das ocupações de terra (Fernandes, 2008a).
No centro dessas conflitualidades há a disputa territorial
que se manifesta no controle do processo de criação e destruição do
campesinato. A questão agrária é então uma questão territorial e a reforma
agrária é a face dessa dimensão. As conflitualidades expressam os embates
dos processos estruturais e suas características conjunturais. Nas últimas
quatro décadas, a questão agrária teve diferentes conjunturas. Na década
de 1970, a intensificação da expansão das monoculturas e a ampliação da
agroindústria, acompanhada da quase extinção dos movimentos camponeses
pela repressão da ditadura militar, marcou uma das maiores crises da
resistência do campesinato. Com a redemocratização do país na década de
1980, ocorreu a consolidação do modelo agroexportador e agroindustrial
simultaneamente ao processo de territorialização da luta pela terra, com o
aumento das ocupações de terras e da luta pela reforma agrária.
Na década de 1990, ocorreu a multiplicação dos movimentos
camponeses em luta pela terra, ampliando a conflitualidade ea criação de assentamentos rurais, tendo o MST à frente desse processo,
como demonstraremos neste artigo. Nesta década, corporações nacionais
e transnacionais ampliam o modelo agroexportador em um amplo conjunto
de sistemas que passou a ser denominado de agronegócio. Esse conjunto
reúne, de formas diferenciadas, os sistemas agrícolas, pecuário, industrial,
mercantil, financeiro, tecnológico, científico e ideológico.
Na primeira década do século XXI, essas mudanças
conjunturais da questão agrária geraram diferentes conflitualidades. Os
movimentos camponeses passaram a se confrontar cada vez mais com
corporações transnacionais e cada vez menos com latifúndios. Esta confrontação
está associada ao processo de globalização da questão agrária
com a territorialização das corporações transnacionais para vários países e
da criação de uma organização mundial de movimentos camponeses, a
Via Campesina. A crise alimentar demonstrou o mito de que o agronegócio
seria o grande produtor de alimentos, destacando a participação do campesinato
e a necessidade de políticas de soberania alimentar. O aumento
do preço do petróleo e a ampliação da produção de agrocombustíveis
transformaram o campo em território para a produção de agroenergia e
de alimentos. O MST e mais de noventa outros movimentos camponeses
brasileiros estão no centro destas conflitualidades da atual questão agrária.
Nesta conjuntura, as políticas de reforma agrária também se modificaram.
Analisamos essas mudanças a partir desta nova conjuntura agrária que dá
atualidade à questão agrária e ao MST.
O MST e as mudanças na conjuntura da questão agrária
Oficialmente, o MST tem 24 anos porque o Movimento definiu o seu primeiro
encontro realizado em janeiro de 1984, na cidade de Cascaval, estado
do Paraná, como a data de sua fundação. Todavia, ao considerarmos
o seu período de gestação (a “pré-história” do MST) a partir das primeiras
lutas e das primeiras reuniões que aconteceram nos anos 1978 a 1983,
o MST está completando 30 anos em 2008 (Fernandes, 2000). Nestas
três décadas de existência o MST conviveu com diferentes conjunturas da
questão agrária. Essas mudanças trouxeram novos desafios e um deles
está no próprio nome. Quando foi fundado, o MST se denominou Movimento
de Trabalhadores Rurais Sem Terra (Stédile e Fernandes, 1999).
Todavia, a expressão “trabalhadores rurais” não sobreviveu na própria sigla,
que desde o final da década de 1980 passou a ser MST. Desde meados
da década de 1990 (especialmente por causa da fundação da Via Campesina),
a expressão “camponês” aparece cada vez mais nas falas e nos
documentos do MST. Se a expressão camponês era estranha na época de
sua fundação, hoje é comum em acampamentos e assentamentos, emreuniões e outros espaços e territórios onde o Movimento
se manifesta. Exemplos podem ser encontrados
nas matérias publicadas no Jornal do MST ou em seu
sítio <www.mst.org.br>.
Esta definição fortaleceu a identidade
do MST como movimento camponês. E esse fortalecimento
acentuou a questão territorial da luta. Um
movimento camponês não existe sem os territórios do
campesinato. Por essa razão, um movimento camponês
também é um movimento socioterritorial
(Fernandes, 2005). É da terra
e de todos os bens produzidos desde
a terra que o campesinato promove
a sua existência. Portanto, o
território é elemento fundante neste
artigo para compreender o MST e a
reforma agrária hoje. Evidente que o
território é condição essencial para
todos os tipos de organização. Por
essa razão, o MST vai disputar territórios
com seu principal oponente: o agronegócio. Essa
disputa é uma das principais marcas da questão agrária
desde o passado até a atualidade e foi ampliada e intensificada
pela modernização e mundialização da produção
agrícola. Contraditoriamente, esta nova realidade
liberta a reforma agrária da simples compreensão distribucionista
e amplia seu conteúdo para uma luta ampla,
multidimensional e complexa. Lutar pela reforma agrária
significa lutar por todas as dimensões do território,
entre elas a tecnologia, o mercado, a educação, saúde
e, principalmente, contra o capital que procura tomar o
controle dos territórios do campesinato.
Esta compreensão de reforma agrária
como território o MST traz desde sua fundação. Por
essa razão, o MST é um movimento camponês moderno
(Oliveira, 2005). Uma das características dos modernos
movimentos camponeses é o rompimento com
as relações de dependências com partidos, governos e
outras instituições, como já foi muito bem argumentado
pelos sociólogos que estudaram os “novos movimentos
sociais”. O MST desde sua fundação manteve autonomia nas relações com as instituições que contribuíram para a sua formação,
como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Central Única dos Trabalhadores
(CUT) e o Partido dos Trabalhadores (PT), para citar somente as
três mais expressivas. Todavia, é fundamental lembrar que o MST também
contribuiu com a formação dessas instituições. Essa relação de contrapartida
nas formações dessas instituições pode ser melhor compreendida na
construção de políticas para a transformação das realidades do país, cujos
avanços são limitados pela correlação desproporcional de forças.
Outra característica da modernidade do MST é saber
acompanhar as mudanças das conjunturas políticas. Aliás, esta é uma prática
de destaque nos principais espaços políticos do MST, que tem grande
relevância para a defesa de sua resistência contra o capital. A participação
do MST na Via Campesina muito contribuiu com essa compreensão. A
maior e melhor compreensão das realidades é possível quando se acompanha
as lutas de movimentos camponeses de vários países do mundo. O
inimigo comum dos movimentos camponeses em todo o mundo chamase
agronegócio. Ser um movimento camponês na América Latina significa
lutar pela reforma agrária e contra o agronegócio. Os países da América
Latina possuem as concentrações fundiárias mais altas do mundo e seus
territórios são intensamente controlados pelas corporações multinacionais
(Fernandes, 2006). As políticas de reforma agrária no Brasil, na Bolívia e
no Paraguai, por exemplo, têm um forte obstáculo: o agronegócio. Este
complexo de sistemas das corporações multinacionais está desafiando os
movimentos camponeses no impedimento da reforma agrária, ora pressionando
os governos, ora fazendo parte do arco de alianças de apoio aos
governos de direita, centro e esquerda na América Latina.
O MST, os governos FHC e Lula e as políticas de reforma agrária
A eleição da primeira gestão do governo Lula (2003-2006) teve o apoio
do MST. Havia a perspectiva de um governo ofensivo na implantação
da reforma agrária, considerando que esta era uma promessa de Lula.
Em 2003, membros do MST participaram, junto com um grupo de especialistas
coordenado por Plinio de Arruda Sampaio, da elaboração do
segundo Plano Nacional de Reforma Agrária (II PNRA). O primeiro PNRA
foi elaborado em 1985 (governo Sarney) sob a coordenação de José
Gomes da Silva (1987; 1989). Os projetos coordenados por estes dois
históricos defensores da reforma agrária nunca foram implantados. Na
década de 1980, a principal oposição à realização do I PNRA partiu dos
ruralistas, principalmente com a criação da União Democrática Ruralista
(UDR). Neste princípio do século XXI, a reforma agrária encontra como
principal opositor o agronegócio, que defende o acesso à terra sob o seu
controle, ou seja, “sem luta de classe e sem conflitos” (Bruno, 2008). A
reforma agrária de mercado, em todas as denominações que esta política
recebeu, representa uma forma de controle territorial por meio da comoditização
(Pereira, 2004), ou seja, a mercantilização da terra, retirando a
reforma agrária do território da política e transferindo-a para o território da
economia capitalista (Ramos Filho, 2008).
As diferenças e semelhanças entre ruralistas e agronegócio
podem ser melhor compreendidas pelas relações que estes mantêm.
Os ruralistas da década de 1980, em parte, integraram-se ao agronegócio
por meio da produção ou pelo arrendamento da terra para as
corporações. Os ruralistas, em grande parte, são formados por pecuaristas,
produtores de soja e de cana de açúcar. Grandes latifundiários encontraram
no modelo do agronegócio uma forma de utilizar suas terras para
a expansão da soja e da cana, arrendando ou produzindo. O latifúndio
controla grande parte das terras agricultáveis e por sua própria natureza as
mantêm improdutivas. O agronegócio avança sobre essas terras, por meio
de sua lógica de produtividade de monoculturas em grande escala. As
mudanças no uso do solo de pecuária para soja ou cana tornaram-se uma
marca do processo em que improdutividade e produtividade se unem
como barreiras às políticas de reforma agrária.
Essa nova conjuntura redefine as correlações de forças
e impede a realização de uma reforma agrária que atinja o território do
agronegócio. A reforma agrária será feita, principalmente pela incorporação
de terras públicas na Amazônia. Essa conjuntura traz um novo desafio para
os movimentos camponeses, como analisaremos a seguir.
Os governos Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Lula
foram os que mais criaram assentamentos ao consideramos os governos
do processo de redemocratização do Brasil. Em torno de 80 por cento
das realizações em números de assentamentos, famílias e área ocorreram
nos períodos destes governos, como pode ser observado nas tabelas 1
e 2. Estas duas tabelas são esclarecedoras para a compreensão de que
a reforma agrária só acontece com a organização dos movimentos camponeses,
por meio da ocupação de terras. Observe-se a relação entre o
número de ocupações e de assentamentos. A política de reforma agrária
não é somente uma ação do Estado. É antes uma ação dos movimentos
camponeses. Sem luta pela terra não há reforma agrária.
A luta pela terra, por meio das ocupações, cresceu mais
intensamente a partir da primeira gestão do governo FHC. As duas gestões
deste governo são marcadas por diferentes políticas de reforma agrária. Na
primeria gestão, o governo FHC apostou que eliminaria a questão agrária
com a realização de uma ampla política de assentamentos. Foi o períodoem que mais se assentou famílias. Todavia, a questão agrária se manteve,
exatamente por causa de seu caráter estrutural, como afirmamos na introdução
deste artigo. Fracassada a teoria do governo FHC, ele iniciou uma estratégia
completamente oposta. Investiu na criminalização das ocupações
de terra, criando medidas provisórias para não assentar famílias ocupantes
de terra e não desapropriar terras ocupadas. Estas medidas políticas atingiram
parcialmente as ações dos movimentos camponeses, como pode ser
observado na diminuição do número de famílias ocupantes na segunda
gestão do governo FHC. Como as ocupações determinam a criação de assentamentos,
a diminuição do número de famílias ocupantes representou
a diminuição do número de famílias assentadas.
Tabela 1
Brasil. Ocupações de terra 1985-2006
Governo Ocupações % Famílias %
Sarney (1985-1989) 229 3 34.333 3
Collor/Itamar (1990-1994) 507 7 82.600 8
FHC (1995-1998) 1.987 28 301.908 29
FHC (1999-2002) 1.991 28 290.578 28
Lula (2003-2006) 2.387 34 343.958 33
Total 7.101 100 1.053.377 100
Fonte: DATALUTA (2008).
Tabela 2
Brasil. Reforma agrária 1985-2006
Governo Assentamentos % Famílias % Hectares %
Sarney (1985-1989) 800 11 122.598 16 8.248.899 17
Collor/Itamar (1990-1994) 461 7 61.825 8 4.485.953 9
FHC (1995-1998) 2.211 31 240.819 31 10.706.365 22
FHC (1999-2002) 1.712 24 149.140 19 7.296.429 15
Lula (2003-2006) 1.879 27 192.257 25 17.092.624 36
Total 7.063 100 766.639 100 47.830.270 100
Fonte: DATALUTA (2008).
O período do governo Sarney é o único em que o número de famílias em
ocupações é menor que os números de famílias assentadas. Na época,
acreditava-se que o governo faria a reforma agrária. A decepção do governo
Sarney, que realizou menos de 10 por cento das metas do I PNRA, fez
com que os movimentos camponeses se tornassem protagonistas principais das políticas de reforma agrária nos governos
seguintes. A primeira gestão do governo Lula começou
com uma grande esperança pela realização da reforma
agrária. Os movimentos camponeses realizaram
o maior número de ocupações de terras e de família
da história da luta pela terra no Brasil. Ao contrário da
segunda gestão do governo FHC, que criminalizou as
ocupações, o governo Lula sempre dialogou com os
movimentos camponeses. Esta tem sido uma característica
marcante deste governo.
Contudo, também criou uma nova
política agrária que, paradoxalmente,
fez avançar e refluir a luta pela
terra e a reforma agrária.
O agronegócio é uma das forças do
arco de alianças que apóia o governo
Lula. O presidente Lula tem feito
claras declarações de admiração
pelo agronegócio. Como afirmamos
na primeira parte deste artigo, o
agronegócio está se apropriando das terras dos latifúndios
e quer manter um estoque de terras para o futuro
próximo, principalmente para a expansão da cana de
açúcar para produção de agroenergia.
De forma velada, o governo Lula
não desapropria terras nas regiões de interesses das
corporações para garantir o apoio político do agronegócio.
Mesmo em regiões de terras declaradamente
griladas, ou seja terras públicas sob o domínio dos latifundiários
e do agronegócio, o governo não tem atuado
intensamente no sentido de desapropriar as terras.
Somente as ocupações e o acirramento dos conflitos
é que podem pressionar o governo a negociar com
o agronegócio para cessão da fração do território em
conflito. Mas, ao mesmo tempo em que ocorre esta
lentidão, o presidente precisa dar uma reposta objetiva
aos camponeses sem-terra. Esta postura resultou
numa reforma agrária paradoxal. Aproveitando-se do
acúmulo das experiências de implantação de assentamentos,
o governo Lula investiu muito mais na regularização
fundiária de terras de camponeses na Ama-zônia do que na desapropriação de novas terras para a criação de novos
assentamentos de reforma agrária.
A opção política do governo Lula de não fazer a reforma
agrária por meio da desapropriação, e sim, principalmente, por meio
da regularização fundiária, gerou um problema para os movimentos camponeses
que mais atuam nas ocupações de terra –no caso, para o MST,
responsável por 63 por cento das famílias em ocupações no período de
2000 a 2007. Neste período, 583 mil famílias ocuparam terras no Brasil.
Destas, 373 mil estavam organizadas no MST. Em 2007, em torno de 70
mil famílias ocuparam terras, sendo que 45 mil estavam organizadas no
MST (DATALUTA, 2008). A junção de políticas do governo Lula atingiu o
MST. A predominância da criação de assentamentos por meio da regularização
fundiária fez com que o tempo de acampamento das famílias
aumentasse consideravelmente. Sem conquistas, muitas famílias abandonam
os acampamentos, o que diminui a pressão contra o governo. A
política compensatória do Bolsa Família –um auxílio financeiro mensal
irrisório– também tem diminuído o poder de pressão dos movimentos
organizados. Embora haja pesquisas em desenvolvimento sobre esta
questão, ainda não temos resultados numéricos. Fazemos esta afirmação
a partir do trabalho de campo em conversas com lideranças camponesas.
Outras leituras desse processo podem ser vistas no artigo de Osvaldo
Russo –ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) <www.correiocidadania.com.br/content/view/1136/47>.
Ou em matéria publicada pelo jornal O Estado de São Paulo em 27 de
abril de 2008, na página A10. Ou ainda em matéria publicada pelo jornal
Folha de São Paulo em 4 de novembro de 2007, página 4.
O refinanciamento de dívidas do agronegócio e o aumento
de novos créditos de investimentos e custeio têm possibilitado ao
agronegócio a territorialização sobre as terras da Amazônia, desmatando
áreas recordes nos estados de Mato Grosso, Rondônia e Pará. No Centro-
Sul, as corporações compram extensas áreas para expansão da cana e do
eucalipto. Estas políticas diminuíram o poder de pressão dos movimentos
camponeses e intensificaram a dinâmica do agronegócio. Este também
atua em Roraima, na fronteira com a Venezuela, colocando em risco a manutenção
dos territórios indígenas. Esta conjuntura nos desafia a repensar
o conceito de território. A simplificação desse conceito como apenas o
espaço geográfico de uma nação não é suficiente para compreender as
conflitualidades entre os movimentos camponeses e indígenas da América
Latina. É preciso compreender os diferentes tipos de territórios em disputa
que compõem o território nacional (Fernandes, 2008b).
O MST e a diversidade de movimentos e de assentamentos
Para melhor compreender o paradoxo da reforma agrária no Brasil hoje é
preciso analisar a diversidade de movimentos camponeses e de territórios
camponeses que se formaram nos últimos anos. Mesmo que o MST esteja
enfraquecido pelas políticas do governo Lula, há avanços importantes e desafios
a superar. O MST e os movimentos que compõem a Via Campesina
Brasil estão enfraquecidos, porque na correlação de forças não conseguiram
ocupar espaços políticos importantes e fazer com que o governo Lula
aplicasse uma política agrária que atendesse os interesses do campesinato.
Um exemplo é a não execução de uma política de reforma agrária ofensiva
que intensificasse o processo de territorialização dos movimentos camponeses,
com a criação de mais assentamentos por desapropriação do que
por regularização fundiária. Os avanços estão na expansão do território
camponês e nas experiências dos setores de educação e produção. Mas
ainda precisam superar muitos desafios para aumentar a participação do
campesinato nessas políticas. O MST é o movimento camponês mais atuante
na luta pela terra no Brasil. Nessas três décadas de existência do Movimento,
dezenas de outros movimentos surgiram. Em 2008, o número de
movimentos camponeses na luta pela terra era noventa e três (Massaretto,
2008). O crescimento do número de movimentos intensifica a disputa
territorial que tem à frente o MST, que é reponsável por 63 por cento das
famílias que lutaram por terra nos últimos sete anos.
No Brasil, a fronteira agrícola ainda está aberta, de modo
que agronegócio e camponeses se territorializam sobre o espaço geográfico
da Amazônia. Essa condição possibilita o aumento dos territórios do
campesinato e do agronegócio. Este é um elemento paradoxal da reforma
agrária no Brasil. A reforma agrária é compreendida pelas mudanças na
estrutura fundiária de um país. No caso do Brasil, essa mudança está ocorrendo,
mas a desconcentração fundiária não. O Brasil amplia o território
agrícola e a concentração de terras. É fácil compreender essa contradição
quando analisamos os dados da estrutura fundiária brasileira e percebemos
que tanto o agronegócio quanto o campesinato ampliaram seus territórios
nos últimos quinze anos (Fernandes, 2008a).
No governo Lula, a ampliação do território camponês
ocorreu pela apropriação das terras públicas por meio da regularização fundiária,
bem como pela compra de terras por meio de políticas de créditos
fundiários. Por ampliação do território camponês estamos nos referindo
ao aumento do número de unidades camponesas e pelo reconhecimento
oficial de posses, quando o INCRA incorpora em seu cadastro os números
de famílias e as respectivas áreas ocupadas, registrando-os como resultados
da reforma agrária. Esta nova política aumentou os tipos de assenta mentos. Segundo os estudos de Coca (2008) e Rocha (2008), entre os
assentamentos criados predominam os agroflorestais em detrimento dos
agropecuários como tendência crescente desde a primeira gestão do atual
governo. Nos estudos desses dois pesquisadores estão registrados dezoito
tipos de assentamentos de reforma agrária e sete tipos de assentamentos
de reforma agrária de mercado. Esta diversidade é resultado da criação de
novos tipos de assentamentos, que ultrapassam o clássico modelo agropecuário
e também respondem a diferenças regionais. Os movimentos
camponeses e, especialmente, o MST, têm se utilizado dessa diversidade
para avançar na luta pela reforma agrária em áreas próximas às regiões
metropolitanas. Modelos de assentamentos agroflorestais criados para a
Amazônia são implantados próximos à região metropolitana de São Paulo
(Golfbartt, 2007). Ao mesmo tempo, também aumentam os números de
assentamentos de reforma agrária de mercado, principamente nas regiões
Nordeste e Centro-Sul (Coca, 2008; Rocha, 2008).
Conclusão
O aumento dos territórios do campesinato e do agronegócio aponta para
uma acirrada disputa territorial no futuro próximo com o começo do fechamento
da fronteira agrícola brasileira. Esta condição vai acabar com o atual
paradoxo da reforma agrária e intensificar os conflitos. Outro elemento da
disputa territorial que já está se formando é o uso das terras para a produção
de agroenergia. As atuais políticas que buscam resolver o problema
do petróleo estão acirrando a disputa territorial pelo tipo de uso da terra.
De um lado, o agronegócio intensifica a produção de agroenergia e de
commotidies para indústrias de alimentos. De outro lado, a Via Campesina
defende o aumento do uso das terras para a produção de alimentos. O paradoxo
volta ser contradição como elemento estrutural da questão agrária.
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