"O Brasil assiste sinais de gestação no último ano de um novo ciclo de lutas sociais, que intriga, assusta e empolga diversos setores da sociedade. As manifestações que explodiram em junho, mas continuaram com uma intensidade menor no período posterior, abriram um debate sobre o sentido desses protestos, os limites das formas de organização, o uso das táticas de depredação e a violência", escreve Igor Felippe Santos, jornalista, em artigo publicado por Carta Maior, 18-02-2014.
Eis o artigo.
A perspectiva de novas manifestações de massa neste ano também gera dúvidas sobre protestar ou não durante aCopa do Mundo e o impacto nas eleições, tendo como pano de fundo quem ganha ou perde com esse quadro. Para alguns, esses protestos criam um clima de caos social que prejudica o projeto político em curso e beneficia a oposição de direita; para outros, as manifestações são o motor para o aprofundamentos das mudanças sociais, destravando os limites da coalizão em torno do PT e levando a cabo as reformas estruturais.
Essas questões são relativamente novas no país, porque desde o final da década de 70 a esquerda tem hegemonia (mesmo sem ter exclusividade) nas manifestações; enquanto a direita usou o Estado e o poder econômico para fazer política e defender seus interesses. Em junho, cada metro quadrado das manifestações foi alvo de disputa entre diversos segmentos da direita e da esquerda, que sem unidade política e ideológica abriu "uma avenida" para o avanço dos setores conservadores.
A esquerda passa por um momento novo nos últimos 12 anos, com a chegada do PT à Presidência da República. O principal partido de esquerda do país venceu três eleições consecutivas para o governo federal, com sustentação em uma ampla coalizão de forças políticas de direita, centro e esquerda e frações de classes da burguesia e dos trabalhadores. A caminhada para o PT alcançar a Presidência começou em 1989, quando Luiz Inácio Lula da Silvaperdeu para Fernando Collor no 2º turno eleitoral. O desfecho dessa eleição foi a derrota do projeto político forjado no processo de lutas da década de 80, que deram origem ao PT, à CUT e ao MST.
Além disso, a derrota das forças sociais que emergiram nos anos 80 no Brasil, paralelamente à queda do Muro de Berlim e ao fim da URSS, abriu margem para a ofensiva global do capital e à implementação do neoliberalismo.
As políticas neoliberais operaram para o enfraquecimento do Estado, as privatizações das empresas estatais, a abertura econômica para o capital financeiro e a flexibilização da legislação trabalhista. Uma das consequências dessas medidas políticas e econômicas foi o enfraquecimento do movimento sindical, com as perdas de direitos e o desemprego, debilitando o principal ator das lutas sociais da década de 80. Ao mesmo tempo, partidos de esquerda, especialmente o PT, ganharam eleições para câmaras, assembleias, prefeituras e governos estaduais. Assim, a luta eleitoral passou a ditar o ritmo das ações do partido e de diversos setores da esquerda.
Nesse quadro, o MST ganhou força e se transformou na principal expressão de luta social, a partir da segunda metade da década de 90. As ocupações de terra, as grandes marchas e a reação violenta do Estado e do latifúndio chamaram atenção da sociedade para a luta dos sem-terra. O Massacre de Eldorado dos Carajás em 17 de abril de 1996, a grande marcha a Brasília no ano posterior, as ocupações de terra no Pontal do Paranapanema, a ocupação da fazenda do presidente Fernando Henrique Cardoso, entre outros acontecimentos, fizeram do MST a principal força social de resistência ao neoliberalismo no país.
Com a chegada de Lula à presidência da República, o PT sofreu o desgaste de gerenciar o governo. Já a CUT passou a sofrer acusações de se submeter aos companheiros que estavam na administração pública. O MST aproveitou as melhores condições de luta, com a multiplicação de acampamentos com a expectativa criada pela eleição do torneiro mecânico, para fazer ocupações de terra por todo o país. Em 2005, o movimento realizou uma grande marcha de Goiânia a Brasília, quando 12 mil trabalhadores rurais marcharam mais de 200 quilômetros durante 17 dias.
No ano seguinte, fez um protesto com 2 mil mulheres na sede da empresa Aracruz Celulosa, no Rio Grande do Sul, para denunciar os impactos sociais e ambientais das florestas industriais de eucalipto.
Com essa ação, o movimento intensificou um processo de lutas contra o agronegócio, caracterizado como a aliança dos fazendeiros capitalistas com empresas transnacionais e o capital financeiro, paralelamente às ocupações de latifúndios improdutivos. Mesmo sob o governo Lula, o movimento continuou fazendo lutas pela Reforma Agrária e enfrentamentos contra o agronegócio, que desagradavam a coalizão de forças em torno do PT. No entanto, sempre que o projeto em curso esteve sob pressão da direita, o movimento agiu de forma responsável, denunciando o que estava em jogo. Assim, manteve autoridade política e se tornou referência ideológica de setores progressistas dos movimentos populares, do operariado, da juventude e da intelectualidade.
Em 2007, o 5º Congresso Nacional do MST apresentou a proposta de Reforma Agrária Popular, que atualiza o programa agrário do movimento, levando em consideração as mudanças na agricultura com a ofensiva do agronegócio. O governo Lula manteve uma política tímida de desapropriação de terras e criação de assentamentos, que foi perdendo fôlego no final do segundo mandato. Com a lentidão do governo, muitas famílias acampadas perderam a esperança de conquistar a terra e desanimaram de permanecer nos acampamentos. Além disso, o crescimento mediano da economia, que aqueceu o mercado de trabalho, abrindo vagas de empregos, criou uma alternativa temporária para as famílias que viviam nos acampamentos.
Dessa forma, diminuiu a intensidade das lutas dos acampados, com a queda no número de ocupações, e aumentou a dificuldade para organizar novos acampamentos. Com isso, o movimento passou a sofrer críticas de setores de extrema-esquerda e de direita de que teria abandonado a luta e de ser cooptado pelo governo. Nesse quadro, o movimento aprofundou o debate sobre a Reforma Agrária Popular, que mantém a perspectiva de organizar acampamentos e ocupar terras, mas agrega a necessidade de organizar os assentamentos, viabilizando a produção por meio de cooperativas e implementação de agroindústrias. Além disso, coloca a demanda de garantir educação à população do meio rural e desenvolver uma nova matriz tecnológica com base na agroecologia.
Ao mesmo tempo, o movimento desenvolveu uma formulação para compreender o caráter do Estado brasileiro (com seus diversos instrumentos para garantir os interesses da classe dominante) e do governo Lula/Dilma (formado por uma composição de forças em torno do projeto do neodesenvolvimentismo). Assim, o MST chegou aos 30 anos e realizou o seu 6º Congresso Nacional de forma madura, mantendo a perspectiva de ocupar latifúndios, mas colocando a necessidade de organizar os assentamentos para lutar por mudanças que viabilizem o desenvolvimento do meio rural.
A grande marcha com 15 mil pessoas e três quilômetros de bandeiras vermelhas realizada pelo MST na semana passada, que terminou com protestos simultâneos no STF e no Palácio do Planalto, demonstra a linha do movimento, de enfrentar os setores conservadores que controlam o Judiciário e pressionar o governo de coalizão de forças que impede as mudanças estruturais. A retomada da luta de um movimento que mantém a referência nos movimentos sociais tradicionais e o respeito da juventude em luta no último período pode cumprir um papel pedagógico, respondendo na prática algumas questões e dúvidas colocadas com os protestos realizados nos últimos meses nos centros urbanos, e contribuir na consolidação do novo ciclos de lutas que virá no próximo período.
Trajetória, lutas e conquistas do MST recolocam a importância de ter uma organização para (1) fazer as mobilizações, pressionar os governos e enfrentar as ofensivas da direita, do Estado e do capital, (2) manter o sentido político das lutas, evitando manipulações dos setores conservadores, (3) não se submeter nem ignorar as contradições do governo federal e, inclusive, (4) garantir a segurança dos manifestantes em momentos de conflitos nas mobilizações (sem a necessidade de qualquer bloco negro que atue de forma descolada). Assim, o novo ciclo de luta social poderá levar a cabo suas demandas, sem abrir margem para retrocessos nem ficar no imobilismo dos acomodados com a coalizão governamental, contribuindo na construção de um projeto político de reformas estruturais na sociedade.
Eis o artigo.
A perspectiva de novas manifestações de massa neste ano também gera dúvidas sobre protestar ou não durante aCopa do Mundo e o impacto nas eleições, tendo como pano de fundo quem ganha ou perde com esse quadro. Para alguns, esses protestos criam um clima de caos social que prejudica o projeto político em curso e beneficia a oposição de direita; para outros, as manifestações são o motor para o aprofundamentos das mudanças sociais, destravando os limites da coalizão em torno do PT e levando a cabo as reformas estruturais.
Essas questões são relativamente novas no país, porque desde o final da década de 70 a esquerda tem hegemonia (mesmo sem ter exclusividade) nas manifestações; enquanto a direita usou o Estado e o poder econômico para fazer política e defender seus interesses. Em junho, cada metro quadrado das manifestações foi alvo de disputa entre diversos segmentos da direita e da esquerda, que sem unidade política e ideológica abriu "uma avenida" para o avanço dos setores conservadores.
A esquerda passa por um momento novo nos últimos 12 anos, com a chegada do PT à Presidência da República. O principal partido de esquerda do país venceu três eleições consecutivas para o governo federal, com sustentação em uma ampla coalizão de forças políticas de direita, centro e esquerda e frações de classes da burguesia e dos trabalhadores. A caminhada para o PT alcançar a Presidência começou em 1989, quando Luiz Inácio Lula da Silvaperdeu para Fernando Collor no 2º turno eleitoral. O desfecho dessa eleição foi a derrota do projeto político forjado no processo de lutas da década de 80, que deram origem ao PT, à CUT e ao MST.
Além disso, a derrota das forças sociais que emergiram nos anos 80 no Brasil, paralelamente à queda do Muro de Berlim e ao fim da URSS, abriu margem para a ofensiva global do capital e à implementação do neoliberalismo.
As políticas neoliberais operaram para o enfraquecimento do Estado, as privatizações das empresas estatais, a abertura econômica para o capital financeiro e a flexibilização da legislação trabalhista. Uma das consequências dessas medidas políticas e econômicas foi o enfraquecimento do movimento sindical, com as perdas de direitos e o desemprego, debilitando o principal ator das lutas sociais da década de 80. Ao mesmo tempo, partidos de esquerda, especialmente o PT, ganharam eleições para câmaras, assembleias, prefeituras e governos estaduais. Assim, a luta eleitoral passou a ditar o ritmo das ações do partido e de diversos setores da esquerda.
Nesse quadro, o MST ganhou força e se transformou na principal expressão de luta social, a partir da segunda metade da década de 90. As ocupações de terra, as grandes marchas e a reação violenta do Estado e do latifúndio chamaram atenção da sociedade para a luta dos sem-terra. O Massacre de Eldorado dos Carajás em 17 de abril de 1996, a grande marcha a Brasília no ano posterior, as ocupações de terra no Pontal do Paranapanema, a ocupação da fazenda do presidente Fernando Henrique Cardoso, entre outros acontecimentos, fizeram do MST a principal força social de resistência ao neoliberalismo no país.
Com a chegada de Lula à presidência da República, o PT sofreu o desgaste de gerenciar o governo. Já a CUT passou a sofrer acusações de se submeter aos companheiros que estavam na administração pública. O MST aproveitou as melhores condições de luta, com a multiplicação de acampamentos com a expectativa criada pela eleição do torneiro mecânico, para fazer ocupações de terra por todo o país. Em 2005, o movimento realizou uma grande marcha de Goiânia a Brasília, quando 12 mil trabalhadores rurais marcharam mais de 200 quilômetros durante 17 dias.
No ano seguinte, fez um protesto com 2 mil mulheres na sede da empresa Aracruz Celulosa, no Rio Grande do Sul, para denunciar os impactos sociais e ambientais das florestas industriais de eucalipto.
Com essa ação, o movimento intensificou um processo de lutas contra o agronegócio, caracterizado como a aliança dos fazendeiros capitalistas com empresas transnacionais e o capital financeiro, paralelamente às ocupações de latifúndios improdutivos. Mesmo sob o governo Lula, o movimento continuou fazendo lutas pela Reforma Agrária e enfrentamentos contra o agronegócio, que desagradavam a coalizão de forças em torno do PT. No entanto, sempre que o projeto em curso esteve sob pressão da direita, o movimento agiu de forma responsável, denunciando o que estava em jogo. Assim, manteve autoridade política e se tornou referência ideológica de setores progressistas dos movimentos populares, do operariado, da juventude e da intelectualidade.
Em 2007, o 5º Congresso Nacional do MST apresentou a proposta de Reforma Agrária Popular, que atualiza o programa agrário do movimento, levando em consideração as mudanças na agricultura com a ofensiva do agronegócio. O governo Lula manteve uma política tímida de desapropriação de terras e criação de assentamentos, que foi perdendo fôlego no final do segundo mandato. Com a lentidão do governo, muitas famílias acampadas perderam a esperança de conquistar a terra e desanimaram de permanecer nos acampamentos. Além disso, o crescimento mediano da economia, que aqueceu o mercado de trabalho, abrindo vagas de empregos, criou uma alternativa temporária para as famílias que viviam nos acampamentos.
Dessa forma, diminuiu a intensidade das lutas dos acampados, com a queda no número de ocupações, e aumentou a dificuldade para organizar novos acampamentos. Com isso, o movimento passou a sofrer críticas de setores de extrema-esquerda e de direita de que teria abandonado a luta e de ser cooptado pelo governo. Nesse quadro, o movimento aprofundou o debate sobre a Reforma Agrária Popular, que mantém a perspectiva de organizar acampamentos e ocupar terras, mas agrega a necessidade de organizar os assentamentos, viabilizando a produção por meio de cooperativas e implementação de agroindústrias. Além disso, coloca a demanda de garantir educação à população do meio rural e desenvolver uma nova matriz tecnológica com base na agroecologia.
Ao mesmo tempo, o movimento desenvolveu uma formulação para compreender o caráter do Estado brasileiro (com seus diversos instrumentos para garantir os interesses da classe dominante) e do governo Lula/Dilma (formado por uma composição de forças em torno do projeto do neodesenvolvimentismo). Assim, o MST chegou aos 30 anos e realizou o seu 6º Congresso Nacional de forma madura, mantendo a perspectiva de ocupar latifúndios, mas colocando a necessidade de organizar os assentamentos para lutar por mudanças que viabilizem o desenvolvimento do meio rural.
A grande marcha com 15 mil pessoas e três quilômetros de bandeiras vermelhas realizada pelo MST na semana passada, que terminou com protestos simultâneos no STF e no Palácio do Planalto, demonstra a linha do movimento, de enfrentar os setores conservadores que controlam o Judiciário e pressionar o governo de coalizão de forças que impede as mudanças estruturais. A retomada da luta de um movimento que mantém a referência nos movimentos sociais tradicionais e o respeito da juventude em luta no último período pode cumprir um papel pedagógico, respondendo na prática algumas questões e dúvidas colocadas com os protestos realizados nos últimos meses nos centros urbanos, e contribuir na consolidação do novo ciclos de lutas que virá no próximo período.
Trajetória, lutas e conquistas do MST recolocam a importância de ter uma organização para (1) fazer as mobilizações, pressionar os governos e enfrentar as ofensivas da direita, do Estado e do capital, (2) manter o sentido político das lutas, evitando manipulações dos setores conservadores, (3) não se submeter nem ignorar as contradições do governo federal e, inclusive, (4) garantir a segurança dos manifestantes em momentos de conflitos nas mobilizações (sem a necessidade de qualquer bloco negro que atue de forma descolada). Assim, o novo ciclo de luta social poderá levar a cabo suas demandas, sem abrir margem para retrocessos nem ficar no imobilismo dos acomodados com a coalizão governamental, contribuindo na construção de um projeto político de reformas estruturais na sociedade.
Pequenos agricultores sofrem pressão para abandonar terra, diz pesquisadora
Os pequenos agricultores e as comunidades tradicionais brasileiras sofrem constante pressão para abandonar a terra. Isso ocorre porque ela é um bem valioso, disputado com o agronegócio e seus interesses, e ainda, em razão de dificuldades econômicas e falta de políticas públicas que assegurem a permanência no campo, como oferta de saúde e de educação. A avaliação é da pesquisadora Leonilde Medeiros, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). De acordo com ela, o perfil do campesinato brasileiro é migrante. Diferentemente dos camponeses europeus, mais enraizados, no Brasil, o homem do campo’ precisa esforçar-se para permanecer na terra.
A reportagem é de Mariano Branco, publicada pela Agência Brasil, 18-02-2014.
“O [camponês] brasileiro é muito migrante, é constantemente expulso. Aconteceu com posseiros, pequenos proprietários e setores que estão lutando para permanecer em suas terras tradicionais, como índios e quilombolas. [Esses grupos] estão sempre em uma relação muito precária com a terra. [É assim] desde o princípio da colonização. A história do Brasil é uma história de conflito agrário”, destaca Leonilde. Segundo ela, o avanço do agronegócio criou ainda mais tensões para os pequenos agricultores. “Hoje, no Brasil e na África, a terra é a grande frente do agronegócio. O Brasil é um dos poucos países do mundo que ainda tem algumas terras disponíveis. O perfil na América do Norte e Europa é mais estabilizado”, explica a pesquisadora.
Leonilde Medeiros é uma das palestrantes, que discutem a situação de pequenos agricultores e ocupantes de terras tradicionais no seminário Dinâmicas e Perspectivas do Campesinato no Brasil no Século 21, organizado pelo Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Os debates começaram nesta terça-feira (18) e vão até sexta-feira (21). Segundo a professora, que participará nesta quarta-feira (19) de mesa-redonda sobre contradições sociais no campo, embora o conflito agrário seja o principal fator de pressão para pequenos agricultores, as questões financeiras e a escassez de políticas públicas também devem ser levadas em conta.
“Eu acho que um dos elementos chave [para resolver o problema] é a retomada de um programa amplo de reforma agrária. Sem nenhuma mudança legal, basta obedecer à Constituição, que diz que o campo deve ter função social. A segunda questão é garantir com políticas de crédito, educação e saúde, que os pequenos proprietários permaneçam. Eles [agricultores] têm crédito para produção, mas às vezes têm dificuldade para escoá-la. Também têm uma estrutura muito frágil”, diz.
Anderson Amaro Silva dos Santos, da direção nacional do MPA, confirma que a estrutura para garantir a sobrevivência e desenvolvimento dos assentamentos rurais existentes é precária. “Tem muitos assentamentos, em vários estados, bem estruturados e produzindo.
Mas há famílias assentadas há dez anos sem nenhum tipo de estrutura. [Situações assim] passam de 50% [do total de assentamentos”. Anderson diz ainda que tem havido poucos assentamentos novos nos últimos anos.
O diretor do Núcleo de Estudos Agrários de Desenvolvimento Rural do ministério, Guilherme Abrahão, diz que, apesar das alegações de que ainda falta estrutura, a política agrária tem avançado em questões de seguridade social, educação, crédito e assistência técnica. “Em uma análise, o que nós podemos dizer é que não queremos fazer assentamento pelo assentamento. O acesso [à terra] é importantíssimo, mas só a terra não garante. O que mudamos nesse último período é a configuração para além do acesso à terra. Avançamos na forma de fazer reforma agrária no Brasil”, declarou.
Carvalho critica solução de conflitos agrários
Apesar da redução de ocupação de terras por movimentos sociais no campo, o cenário de conflitos agrários continua emblemático. É o que afirma pesquisa sobre conflitos fundiários e agrários do Centro de Estudos sobre o Sistema de Justiça (Cejus), da Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça (SRJ/MJ). O estudo, divulgado nesta quarta-feira, em Brasília, contou com a presença do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho.
A reportagem é de Tarso Veloso, publicada pelo jornal Valor, 20-02-2014.
Segundo um dos coordenadores da pesquisa, Darci Frigo, o poder Judiciário precisa assumir mais responsabilidade nos conflitos fundiários agrários. "Não é que não existam juízes sensibilizados, mas é preciso mudar a cultura vigente. Hoje, o direito à propriedade se sobrepõe a todos os outros direitos", disse. "A não criminalização e o reconhecimento à legitimidade dos movimentos como ferramenta de inclusão social é fundamental pelo Estado", disse.
Carvalho defendeu uma mudança na postura atual do governo na resolução dos conflitos e defendeu as manifestações de minorias. "Não vou comentar a ação do Judiciário. Mas, no Executivo, é evidente que você não tem uma posição neutra. É evidente que temos uma posição favorável a essa mentalidade do "tudo que fere a ordem estabelecida é um problema". Portanto, cabe muitas vezes ao Executivo a tarefa ingrata de cumprir uma lei que não podemos estar de acordo com ela", afirmou.
"Nós vivemos a angústia diária de ver os conflitos aparecendo em todo o país em uma complexidade cada vez maior. Temos que atacar as causas que provocam os conflitos e temos que estar bem informados para agir de maneira adequada", disse.
Segundo ele, os conflitos só terão solução quando a raiz do problema for atacada. "Os conflitos decorrem de uma histórica situação de desigualdade, opressão e exclusão", disse.
"Ao longo do tempo, a emergência de uma mobilidade social maior e do crescimento da consciência de direitos por parte de muitos, que até então estavam fora do cenário da luta, sem dúvida nenhuma, é um fator que eu considero positivo. Apesar de positiva, essa situação agrava os conflitos", disse.
Carvalho comentou um vídeo, que circula na internet, gravado em novembro do ano passado, em que dois parlamentares da bancada ruralista criticam movimentos sociais. O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado Luis Carlos Heinze (PP-RS), chegou a classificar, em sua fala, quilombolas, índios, gays e lésbicas como "tudo que não presta". O deputado Alceu Moreira (PMDB), também da bancada ruralista, classifica de "vigaristas" os que tentam ocupar propriedades.
"Infelizmente, dois parlamentares brasileiros se referiram aos 'que não prestam'. Essa declaração é uma confissão sincera de um pensamento que está na inconsciência de grande parte da sociedade. Por que o que presta é o que está dado, o que domina. Tudo que incomoda e que agita, que estava quietinho na senzala ou na aldeia ou vivendo sua discriminação no silêncio, tudo isso passa a incomodar", disse Carvalho, bastante aplaudido.
Sem Terra LGBT lutam por uma sociedade sem preconceitos
Militantes homossexuais do MST contam suas histórias. Reforma Agrária Popular inclui desafio da diversidade.
A reportagem é de Joana Tavares com a colaboração de Geanini Hackbardt e publicada pelo portal do MST, 19-02-2014. Foto: Joka Madruga, Oliver Kornblihtt e Pilar Oliva.
Jarbas era acampado em Alagoas e viajou ao Rio Grande do Sul para fazer um curso. Lá, conheceu Nilton Cordeiro, do Paraná. A paquera virou namoro, o namoro ficou firme e o casal resolveu morar junto. Escolheram o sul, onde os dois trabalham e pretendem se casar ainda este ano.
Lucas Santos Souza tem 19 anos e gosta de se vestir como mulher à noite. Ele se define como “transformista”, está sem namorado, mas diz que “está na pista para negócio”.
Já Naiara prefere o nome que escolheu do que o de batismo – Tiago Rodrigues – e conta que é respeitada em sua identidade no acampamento onde vive, em Goiás. Lucas da Silva, o Luquete, tem 28 anos e “muito orgulho da sua classe”.
Talles Reis, mineiro hoje em Pernambuco, pretende casar no papel com Rogério Castro e adotar uma criança em 2014. Mariana Arantes e sua esposa já concretizaram o sonho e vão ter um filho por fertilização in vitro.
Jarbas, Nilton, Lucas, Naiara, Lucas, Talles e Mariana são militantes do MST. Atuam em diferentes frentes do Movimento e contam que não tiveram grandes problemas em viver sua sexualidade dentro da organização.
“Muita gente no MST tem essa opção. As relações no Movimento são mais próximas, aí a gente acaba se descobrindo mais e se aceitando também, né? A vivência no MST permite a gente ter uma aceitação melhor, tanto pessoal quanto coletiva”, acredita Nilton, que atua na secretaria estadual do Paraná.
Mariana achou que enfrentaria mais preconceito, especialmente na base. “Mas em todos os lugares onde moramos, assentamentos e acampamentos, a relação foi ótima”, conta. “Muita gente torceu por nós e apoiou nossa união”, lembra Rogério, que conheceu Talles quando ele atuava no escritório do MST no Rio de Janeiro.
“Eu nunca me senti discriminado dentro do Movimento, mas já peguei muita piadinha machista, homofóbica, que também são atitudes preconceituosas. Essas piadas são gerais, mas te atingem. E isso é muito comum”, afirma Talles, que milita há 14 anos no MST.
Talles, que já passou pelo Paraná, pela Escola Nacional Florestan Fernandes, Rio de Janeiro e Pernambuco, explica que agora não decide mais as coisas sozinho, e precisa da opinião e aprovação de Rogério. “Acho que para os casais acaba sendo mais fácil, tem mais respeito”, pontua Rogério.
Jarbas e Nilton também relatam que foram apoiados na decisão de morar juntos. “Por ser um movimento camponês, a gente pensava que teria mais dificuldade. Mas para nós até que não tem tido não”, diz Nilton.
Jarbas concorda: “Desde a escola, a gente andava de mão dada, todo mundo sabia que a gente estava junto. Não sinto olhares diferentes não”. “Acho que todo mundo tem que apoiar mesmo, porque estamos lutando pela mesma causa. Mas isso não quer dizer que todos tem que ser iguais, cada um pode ter sua opção, seu jeito. O importante é se unir para o mesmo objetivo”.
Mais banheiros e debates
Naiara, de 17 anos, é bonita e vaidosa. Assentada há 10 anos, ela diz que pouca gente percebe – “assim, só de olhar” – que ela não nasceu mulher: Naiara é transexual. Apesar de se definir como mulher, ela reclama do assédio que sofreu nos banheiros coletivos do VI Congresso. “Não deixaram eu tomar banho no banheiro de mulher. A gente não pode entrar no feminino nem no masculino. Eles não respeitam”, reclama. Ela defende que deveria haver mais espaços para discutir a homossexualidade.
“Na escola, tem palestra sobre um monte de coisa, mas não se fala do homossexual. Deveria ter, para conscientizar as pessoas que a gente respeita para ser respeitado”, defende.
“Minha mãe vai te adorar”
Rogério trabalhava como ator no Rio de Janeiro e conta que não dava muita importância para discussões políticas. “Minha cabeça era meio como do Caetano, essa coisa de que não existe esquerda e direita hoje em dia”.
Aí ele conheceu Talles, que começou a contar do MST, de Cuba e de outras experiências de luta. “Eu perguntei pra ele, 'você ainda acredita nessas coisas?' E ele respondeu, 'por quê, você não?'. Na hora pensei; minha mãe vai te adorar”, diverte-se Rogério, filho de uma militante da Associação José Martí.
“Quando fui conhecendo o MST, achei que todas as questões, todos os vícios do capitalismo, estavam resolvidos nesse grupo. Mas aí vi que não, que ainda tem machismo e discriminação”, diz Rogério, que já fez um trabalho de teatro junto às crianças do MST do Nordeste.
Talles afirma que o MST está inserido em uma sociedade machista, homofóbica e é também produto dela. “Acho que tem que avançar, porque o movimento tem cada vez mais o objetivo de expandir as lutas, o debate da Reforma Agrária Popular quer incorporar outros conceitos de melhoria da qualidade de vida. A luta não é só por terra; vai ter um momento que o MST vai ter que encarar mais profundamente esse debate”, pontua.
Mariana concorda: “Nesse tema o MST tem muito que avançar, a partir da aproximação com organizações que tem acúmulo sobre o tema”.
Construir desde já novos valores
Ela ainda apareceu tímida, mas lá estava a bandeira arco-íris da causa LGBT na mística de abertura do VI Congresso do MST. O tema da diversidade sexual foi colocado como um dos desafios para o próximo período, nos apontamentos de Gilmar Mauro, da coordenação nacional do Movimento.
“É uma bandeira importante porque somos seres humanos, independente da condição de cada um, e não podemos discriminar ninguém. Se queremos de fato construir uma nova sociedade, é preciso plantar aqui e agora esses valores”, defende o dirigente.
“Não tem essa de pensar sobre isso só lá na frente. É agora que se planta as sementes da nova sociedade. Se a gente quiser colher abacate, precisa plantar abacateiro, se a gente quiser uma sociedade libertária, onde todos e todas possam participar com igualdade, tem que plantar aqui e agora”.
Gilmar reforça que todas as formas de violência – contra mulheres, crianças, racistas, homofóbicas ou de qualquer espécie, têm que ser duramente combatidas. “É uma linha política do nosso Movimento”, reforça.
