Movimentos populares diante do governo Lula

10/1/2007-  Helder Gomes, mestre em Economia pela UFES e membro da equipe da Coopemult Consultoria.

O Brasil caminha bem defasado em relação aos movimentos políticos presentes em diversos países latino-americanos na atualidade. De um lado, observa-se uma guinada à direita das principais referências político-partidárias brasileiras. Personalidades construídas a partir das mobilizações de resistência aos governos militares, mas que se encontram encasteladas nas várias instâncias governamentais, dando seqüência aos atos de subordinação a Washington que tanto combateram no passado. De outro lado, ocorre no Brasil uma nítida capitulação da maioria das lideranças sindicais e de alguns outros movimentos populares, viciados no dogmatismo partidário, num momento em que a América Latina experimenta mais um estágio de grandes mobilizações sociais.
É importante registrar que existem exceções, mas, neste artigo procuro resgatar esse movimento mais geral e a apresentar um panorama da política brasileira na atualidade, a partir de três aspectos: a) o processo de degeneração política das esquerdas brasileiras; b) as alterações recentes na prática cotidiana do chamado Novo Sindicalismo Brasileiro; e , c) as tentativas de alguns segmentos intelectuais e de algumas lideranças populares em buscar soluções para a grave crise que abala as esquerdas brasileiras na atualidade. Com isso, o texto tenta apresentar o cenário construído nessa virada para o segundo mandato do Lula, procurando avaliar os limites e as possibilidades de aproximação das lutas populares de nível nacional com a onda de mobilizações existentes hoje na América Latina.
 
Da angústia à autocrítica
 
Analisar a crise de dentro requer muito mais que a cantilena sobre as correlações de forças adversas . É preciso, de uma vez por todas, admitirmos que as esquerdas brasileiras em geral falham em não aproveitar a oportunidade histórica, de se expressar e atuar politicamente como forças efetivamente antagônicas aos movimentos políticos da burguesia multinacional no Brasil. Ao contrário do que se pode supor, trata-se de um processo de amplas repercussões em todo o campo de esquerda, cuja degeneração política se manifesta como um processo gradativo e contagiante, que alcançou as várias instâncias do PT e dos partidos tradicionalmente aliados. Em especial, envolveu o conjunto da militância, que antes atuava diretamente nos movimentos populares e que, pouco a pouco, foram ocupando cargos junto aos mandatos parlamentares, às administrações municipais e regionais e, agora, no governo federal; ou, numa outra dimensão, desses cargos se servem para manter boa parte de suas atividades militantes.
 
Assim, o mais grave nesse processo de degeneração política não está nos casos de corrupção amplamente divulgados. Para um projeto de esquerda, o inaceitável foi a perda de perspectiva sobre a organização das classes trabalhadoras no sentido da transformação social. A ação partidária original foi sendo substituída pela utilização cada vez mais profissional dos instrumentos tradicionais da política brasileira. A corrupção e o envolvimento das cúpulas partidárias com as mais variadas formas de lavagem das famosas sobras de campanhas eleitorais são conseqüências de uma opção programática pelo abandono dos princípios de fundação à esquerda.
 
A guinada do Novo Sindicalismo
 
Exemplo marcante do contágio político degenerativo tem sido a situação da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Ao longo de sua trajetória a CUT foi perdendo completamente sua autonomia em relação ao PT, contrariando um dos princípios programáticos do chamado Novo Sindicalismo , cuja explicação pode estar na dupla representação de seus principais dirigentes, que operavam numa via de mão dupla, multiplicando sua prática política, administrativa e de gestão das finanças, tanto na máquina sindical quanto na estrutura partidária. Atualmente, a ida de ex-presidentes da CUT para ocupar vários cargos no governo federal, inclusive em alguns ministérios, determina um canal direto de cooptação e de cumplicidade de membros da Central Sindical com a política governamental em vários campos, inclusive o estritamente trabalhista.
 
O mais importante a assinalar tem sido a retração explícita das forças de esquerda no meio sindical. As principais lideranças sindicais não conseguiram resistir nas trincheiras traçadas desde a criação da CUT, que se contrapunha ao modelo sindical tutelado, e foram sucumbindo na adesão às novidades que eram impostas ao mundo do trabalho pelas novas regras do jogo. Gradativamente, as perspectivas de organização das classes trabalhadoras para o enfrentamento das relações do capital, refletidas nas atividades de formação política e nas históricas mobilizações populares, foram substituídas por instrumentos mais vinculados à abertura de espaços na sociedade. Passou-se a difundir acriticamente a proposta dos sindicatos buscarem o direito a uma suposta cidadania, em plena era de consolidação das idéias e das políticas neoliberais, quando a cidadania passou a ser sinônimo de capacidade mercadológica de consumo. Além disso, várias lideranças passaram a se ocupar de atividades estranhas ao movimento sindical, ocupando cargos no gerenciamento de fundos de pensão, cooperativas de crédito, entre outras.
 
Agora, ex-sindicalistas estão no poder. Passaram a adotar as políticas neoliberais que antes atacavam, prometendo ampliar o acesso à cidadania negada, dentro da ordem burguesa, a partir de medidas assistencialistas e da cooptação de lideranças do movimento popular. A pauta limitada às negociações em torno de reajustes no Salário Mínimo e na Tabela do Imposto de Renda, bem como a forma como seus resultados são divulgados, como grandes conquistas, ilustram bem essa situação.
 
Pauta limitada
 
O mais grave disso tudo tem sido a adesão de algumas lideranças de vários outros movimentos populares a essa pauta de reivindicações restritivas. Grave, por se tratar de um contexto em que se aprofundam as contradições do capitalismo em nível mundial, em que a América Latina volta a apresentar pólos de resistência aos planos de controle imperialista na administração de uma crise estrutural que se retro-alimenta desde a virada para os anos 1970. Mas, grave, também, porque algumas das principais lideranças do movimento popular brasileiro parecem não se dar conta da dimensão dessa crise. Assim, parecem não perceber as conseqüências perversas que suas manifestações públicas, limitadas por uma agenda (inorgânica aos movimentos de base) adequada à ordem político-partidária, possam ter na organicidade das mobilizações populares, que essas próprias lideranças populares, diga-se, entendem como condição para um enfrentamento mais direto com as contradições do capital.
 
A agenda pautada pela ordem atual no Brasil impõe um debate reduzido entre a ortodoxia do Banco Central e a possibilidade de flexibilidade da atual política econômica. Várias lideranças do movimento popular embarcam nessa discussão, acreditando que o atual governo Lula pode alterar a rigidez fiscal, reduzindo o perfil da dívida pública e ampliando o horizonte de retomada dos investimentos públicos de infra-estrutura econômica e social. Para isso, reivindicam uma redução ainda maior nas taxas de juros internas e algum controle sobre os fluxos de capital, o que diminuiria a necessidade de geração de superávits primários nos patamares atuais. Pode ser até que algo parecido ocorra, apesar de os procedimentos oficiais indicarem o contrário: a continuidade da atual política de metas fiscais e de transferência de riquezas para o exterior. Mas, acontece que não deveria ser este o debate a pautar os movimentos populares nos dias de hoje, até porque as alternativas colocadas em pauta são as mesmas que vêm sendo remoídas há tempos pela ala nacional-desenvolvimentista, mais afinada à parcela do PMDB, do PSDB etc. Esta é a questão de fundo.
 
Fundamentos para esta crítica
 
Boa parte dos mecanismos alternativos de política econômica citados acima pode voltar a ser colocada na ordem do dia. Contudo, uma nova etapa de desenvolvimento capitalista exigiria uma ruptura com a lógica de dominação do capital especulativo parasitário (CARCANHOLO, NAKATANI, 2006), a partir de um novo arranjo político capaz de regenerar a capacidade de investimentos produtivos na escala exigida para a reversão da crise atual em sua verdadeira dimensão. Contudo, a possibilidade de uma nova onda longa de reprodução ampliada do capital pouco pode interessar às classes trabalhadoras em seu conjunto, pois a idéia de inclusão social a partir de uma nova retomada de níveis de crescimento econômico, como ocorreu no período Pós-Guerra , está totalmente defasada em relação às novas formas que assumem as contradições do capital nos dias de hoje. Vejamos isso mais de perto.
 
Recorro a dois economistas marxistas de nosso tempo, que apontam alguns caminhos para nossa reflexão sobre esse tema. Tratando teoricamente do atual estágio de acumulação capitalista, Carcanholo e Nakatani (2006) alertam que a possibilidade de uma solução para a crise estrutural, dentro da ordem capitalista, levaria a humanidade a um processo ainda mais avassalador de exploração do trabalho.
   
A eventual nova etapa capitalista não poderá fazer concessões aos trabalhadores. Ao contrário, só será possível sobre a base de uma exploração ainda maior. Se a etapa especulativa implica uma grande tragédia para a humanidade (pelo menos para parcela importante da humanidade) e se a transição para uma eventual nova etapa implicará um aprofundamento e uma extensão dessa tragédia, o capitalismo que sobreviver só o fará impondo tragédia superior. Isso é resultado da tendência decrescente da taxa de lucro que, apesar do efeito contrariante dos lucros fictícios, segue vigente e operante e, na eventualidade de uma nova etapa capitalista, com o capital fictício contido dentro de estreitos limites, só poderá encontrar atenuante em um nível ainda maior de exploração do trabalho. A etapa do capitalismo especulativo, se ele sobreviver, só poderá ser substituída pelo capitalismo funesto (CARCANHOLO, NAKATANI, 2006, p. 11).
 
Projetando essas contradições mais gerais da mundialização do capital para o caso brasileiro, penso ser difícil imaginar que poderíamos retomar agora o velho sonho dos militares, os quais em plena crise econômica mundial se esforçavam para nos convencer que valia o sacrifício de esperar crescer o bolo , pois, estariam construindo uma ilha de tranqüilidade num mar revolto . Lembram?
 
Retomando o pensamento dos dois professores citados acima chegamos à conclusão de que, nos dias atuais, não basta a simples substituição da agenda neoliberal pela pauta nacional-desenvolvimentista. Os movimentos populares devem se voltar para a recuperação das perspectivas de organização das classes trabalhadoras, sem perder a dimensão internacional do desafio, para que sejam capazes de aglutinar as condições objetivas para o enfrentamento que se anuncia. Em outras palavras, aos que se reivindicam socialistas não basta hastear a bandeira antineoliberal neste momento, pois, qualquer saída dessa crise, com base na preservação da dominação burguesa, levará uma parte considerável da humanidade a ficar ainda mais próxima da barbárie absoluta. Os dois professores sugerem que a alternativa seja construída, então, pelas massas populares, numa perspectiva de ruptura da ordem de exploração vigente:
   
O que deve ser considerado fundamental é que a revolução seja efetivamente popular e democrática, com ampla participação das massas em todos os níveis de decisão. Isso porque a construção consciente de uma nova sociedade irá exigir a organização de um sistema de planificação central, participativo e democrático, sem a formação de uma burocracia estatal. Por isso, há a necessidade de um amplo estudo e uma profunda avaliação dos sistemas de planificação que foram construídos nas experiências dos países que tentaram a construção do socialismo e regrediram para o capitalismo.
 
Enfim, o socialismo só será uma realidade no futuro quando a maioria das nações do mundo tiver realizado as suas revoluções e as novas relações sociais tiverem sido amplamente disseminadas por todo o planeta. Mas, esse não será jamais o resultado espontâneo do desenvolvimento capitalista. A construção do socialismo exige um enfrentamento contra as poderosas forças do capital que, mesmo enfraquecidas, mantêm a hegemonia em todo o mundo (CARCANHOLO, NAKATANI, 2006, p. 24).
 
Pensando assim, percebe-se a armadilha em que se encontram o capital e o trabalho na atualidade, bem como a dimensão dos desafios colocados para os movimentos sociais, tanto no que tange a sua organização interna, quanto à imprescindibilidade de sua integração internacional, especialmente nas relações latino-americanas.
 
Um debate em efervescência
 
Nem tudo está perdido. Restou muita gente sem um contágio integral. Mas, as iniciativas por retomar a organização de lideranças regionais para as discussões de formas alternativas de solução para a crise das esquerdas brasileiras ainda estão bastante incipientes, apesar de algumas das principais lideranças do movimento popular participar de várias dessas instâncias de debates e de tentativas de mobilizações. Existem no Brasil pelo menos três iniciativas de maior expressão no sentido dessa organização de movimentos populares, entre tantas outras de menor peso político: a Assembléia Popular, a Coordenação dos Movimentos Sociais e a Consulta Popular. Participam dessas iniciativas lideranças da Via Campesina e de vários movimentos populares urbanos, mas, existem grandes divergências entre suas formulações.
 
A Consulta Popular procura manter sua independência em relação aos partidos formalmente constituídos. Em seu conteúdo de discussões, faz uma crítica contundente às opções políticas do governo Lula e traça uma abordagem mais audaciosa: a necessidade de se colocar na ordem do dia dos movimentos populares debates e formulações anticapitalistas, no sentido de buscar novas formas de organização e de mobilização. A partir dessa concepção tem proposto um movimento nacional em torno do tema: Alternativas para o Poder Popular .
 
Documentos divulgados pela Assembléia Popular, por seu turno, apontam um caminho mais adaptado ao contexto de crises, a partir do diagnóstico de que o país experimenta um estágio de descenso das mobilizações populares. Assim, propõem debates e formas de pressão com um caráter mais voltado ao enfrentamento às políticas neoliberais. Numa linha parecida procura atuar a Coordenação dos Movimentos Sociais, iniciativa esta com grande peso das lideranças populares urbanas, inclusive de sindicalistas vinculados à CUT. Ao contrário da primeira posição, estas duas mantêm entre seus membros lideranças nitidamente vinculadas ao PT e a outros partidos tidos como do campo da esquerda brasileira.
 
Contudo, a formação de novos movimentos sociais no Brasil também parece fomentar uma contraposição ao papel desempenhado pela maioria sindicalista nos dias atuais. A Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, por exemplo, tem apresentado um trabalho interessante, exatamente por possibilitar a identificação dessas novas referências para a reflexão dos movimentos populares. O trabalho da Rede Brasil tem atraído para seus debates, reuniões e cursos de formação, tanto o Movimento dos Atingidos por Barragens (hidrelétricas), quanto a Via Campesina, a Rede Alerta Contra o Deserto Verde (que atua contra as monoculturas do eucalipto e pinus), a Marcha Mundial das Mulheres e vários outros agrupamentos de ecologistas e militantes sociais. Movimentos estes que procuram organizar as famílias trabalhadoras imediatamente atingidas pelos impactos provocados pelas políticas oficiais de integração física regional da América Latina e, por isso mesmo, trazem a possibilidade de resistência e, quiçá, de busca de outras formas de relacionamento internacional dos povos latino-americanos.
 
Tal posição acirra o debate sobre a política externa do governo Lula. Muitos intelectuais das esquerdas defendem a posição atual do governo brasileiro, argumentando que nunca o país esteve tão voltado para a consolidação da integração econômica regional. Contra essa argumentação, a Rede Brasil reafirma a necessidade de se refletir sobre a qualidade efetiva desses acordos de cooperação e de liberalização comercial, fundados na idéia de se constituir uma grande economia, competitiva, a partir da integração das Américas (o caminho para a ALCA). Crítica feroz da atual política do governo Lula, a militância da Rede Brasil propõe que os movimentos populares brasileiros passem a interagir mais organicamente com os demais movimentos similares da América Latina, no sentido de recuperar as proposições de uma integração alternativa àquela proposta pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento. A integração alternativa latino-americana deve basear-se na autodeterminação dos povos, no resgate do conceito de soberania, num outro padrão de produção, de distribuição e de consumo, longe das determinações do imperialismo estadunidense.
 
Assim…
 
Como se vê são vários os caminhos trilhados até aqui pela militância dos movimentos populares no Brasil. Parcela considerável persiste cega no doutrinamento partidário, resistindo a qualquer formulação crítica, especialmente no que tange à avaliação do governo Lula. Outra parte das lideranças começa a buscar alternativas de manifestação de suas angústias, mas, ainda vacila frente ao desafio de abandonar toda a sua trajetória política e a esperança depositada num projeto de partido dirigente, que parece não existir mais, procurando por alguma chance de sensibilizar os antigos companheiros para que retornem a suas origens populares. Mas, frente à rigidez da trajetória degenerativa dos partidos de esquerda e de suas representações governamentais, uma outra parcela de lideranças populares já perdeu totalmente a perspectiva de que o governo Lula possa formular uma transição para um governo democrático e popular. Entretanto, essas lideranças ainda não conseguiram formular um projeto capaz de atrair para seus espaços de debates e de formulações um contingente significativo de outras lideranças, para se apresentar como uma força política alternativa de fato.
 
Diante desse debate interno em aberto e, também, da pressão exercida pela experiência histórica de alguns movimentos populares na América Latina, espera-se que as lideranças dos movimentos populares brasileiros percebam a necessidade de cuidarem, urgentemente, de caminhar em busca da interação política com as mobilizações sociais que hoje agitam o continente.
 
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REFERÊNCIAS:
 
CARCANHOLO, Reinaldo A., NAKATANI, Paulo. Capitalismo Especulativo e Alternativas. In: XI Encontro Nacional de Economia Política (Anais – CD Room). Vitória: UFES/Departamento de Economia/Programa de Pós-Graduação em Política Social , jun./2006.